Profissional diz que era ameaçada de morte e se demitiu; funcionários pararam em protesto
Funcionários do centro de saúde do Jardim Aeroporto fizeram passeata ( Carlos Sousa Ramos/AAN)
Funcionários do centro de saúde do Jardim Aeroporto, região do Ouro Verde em Campinas, paralisaram as atividades e realizaram na manhã desta quinta-feira uma passeata em protesto contra a falta de estrutura, recursos humanos e segurança. Uma médica que atendia havia três anos no local pediu exoneração do cargo na semana passada após sofrer ameaças de morte por parte de pacientes integrantes de uma mesma família. A unidade fechou durante todo o dia e retoma os atendimentos hoje.A clínica geral, que pediu para não ser identificada, relatou à reportagem que o impasse começou quando ela atendeu um morador da região, mas que ele e a mulher não ficaram satisfeitos, pedindo outro tipo de encaminhamento ao caso. Segundo a médica, ela não teria aceitado o pedido dos dois e marcado uma nova consulta com outro médico, mas não teriam comparecido. “Diziam para mim que não ia ficar barato, que eu iria ver o que aconteceria com meu ‘rostinho’. Fiz um boletim de ocorrência e o delegado me aconselhou a deixar o emprego, pois não teria como evitar que alguma coisa acontecesse. As ameaças foram constantes e não pararam por semanas.”A região onde está localizado o Jardim Aeroporto é uma das mais violentas de Campinas. Neste ano, a área atendida pelo 9º Distrito Policial (DP) registrou o maior número de homicídios da cidade: 17 casos, perdendo somente para o Campo Grande.A médica trabalha no Sistema Único de Saúde (SUS) desde que se formou, há dez anos, e atuou em outras regiões vulneráveis de Campinas, bairros como São Marcos e Anchieta, mas afirma nunca ter passado por situação semelhante. De acordo com ela, sua decisão também foi motivada por se sentir desamparada pela Prefeitura que, disse, não ofereceu qualquer tipo de apoio mesmo após ter relatado a situação. Procurada, a Prefeitura informou, por meio de assessoria de imprensa, que desconhece o pedido de demissão da médica.Outros funcionários também relataram que agressões por parte dos pacientes são constantes, principalmente a enfermeiros e farmacêuticos que estão na linha de frente na recepção à população. “As pessoas ficam muito irritadas por não conseguirem atendimento, por ficarem muito tempo esperando a consulta”, disse a auxiliar de enfermagem Benedita do Carmo Vasconcelos, que trabalha há 23 anos no Jardim Aeroporto.Casos de violência foram registrados em outros locais. Em junho, uma enfermeira do Jardim São Marcos levou um tapa de uma paciente ao dizer que ela teria de esperar mais para ser atendida. DemandaO centro de saúde é responsável por atender uma área de 22 mil moradores. Por dia, são realizadas, em média, 90 consultas e a coleta de exames para 30 pacientes. As equipes multidisciplinares e de agentes comunitários são responsáveis por 75 visitas a residências ao dia e os procedimentos de enfermagem (vacinação, curativos, inalação) chegam a contabilizar mais de cem. A farmácia atende mais de 220 usuários diariamente.A falta de pessoal suficiente para dar conta da demanda aumenta o desgaste tanto dos pacientes quanto dos profissionais. O local ficou pelo menos um ano sem ginecologista. O especialista só chegou há uma semana. De acordo com a conselheira de saúde da região, Maria Aparecida Trovó, com a saída da médica que sofreu ameaças, a unidade conta agora com apenas um clínico geral e três pediatras — sendo que está saindo para licença médica. “Às sextas-feiras e aos sábados não tem nenhum médico. Só o enfermeiro, que faz o que pode ou encaminha para outro lugar”, disse a conselheira. PasseataA passeata reuniu funcionários do centro de saúde. Segundo informações dos organizadores do ato, a população havia sido avisada com antecedência e as consultas remarcadas.Em nota, a Secretaria de Saúde informou que “mantém diálogo com o conselho que representa a unidade e esclarece que a gestão está ciente das reivindicações e estudando a melhor forma para atendê-las”. Quanto à falta de médicos, a secretaria informou que a previsão é de que mais dois profissionais assumam as vagas da unidade, entre eles um ginecologista.EntrevistaA médica que se demitiu do Centro de Saúde do Jardim Aeroporto disse que se sentiu desamparada e não teve outra alternativa. Mas afirma que continuará na saúde pública. Ela, porém, pretende se mudar para outra cidade. Leia trechos da entrevista abaixo: A senhora reportou essas ameaças aos seus superiores?Médica: Sim, ao Distrito de Saúde. O problema é o desamparo que sentimos numa situação como essa. As pessoas não acreditam que se trata de uma ameaça verdadeira, mas tratam como uma questão pessoal com o paciente. A gente não pode se acostumar ou se culpar com essas situações. O que a gente vê é um conformismo dos gestores. Por isso, resolvi, por bem, pedir demissão. Situações como essa contribuem com o desinteresse dos médicos em trabalhar no SUS?Com certeza. Acho compreensível que qualquer profissional não queira adicionar riscos ao exercer seu trabalho. Acredito que isso vale para qualquer profissional, como os professores que também enfrentam dificuldades. Ninguém dá amparo para o momento em que saio do centro de saúde e dirijo até a minha casa. Para ter uma ideia, quando pedi demissão por sofrer ameaças, eu fui embora sozinha, por minha conta e risco. Ninguém, além da minha equipe, se preocupou. Pretende abandonar a carreira na saúde pública?Não. Devo procurar trabalho em outra cidade. Eu escolhi trabalhar na saúde pública, tanto que fiz uma especialização nesta área. Foi uma opção.