A psicóloga Maria de Fátima dos Santos recomenda cautela
A Associação Americana de Psiquiatria acaba de publicar a mais recente versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM-5). O material — revisado por 1,5 mil especialistas de 39 países — cataloga diversos tipos de distúrbios e seus sintomas e, a cada versão, inclui novas considerações. E justamente alguns desses novos pontos contidos na publicação, uma referência mundial quando se trata de distúrbios mentais, têm provocado polêmica.
A tristeza vinda com o luto, por exemplo, deixa de ser algo normal e pode ser considerada agora como um indício de depressão grave. Mudanças de humor, comuns na adolescência, e hábitos como comer em excesso ou acumular objetos também podem ser considerados transtornos mentais passíveis de tratamento profissional especializado. Isso tudo leva a crer que, de acordo com a publicação, sentimentos até então considerados naturais, e tidos como importantes experiências de vida, passam a ser cada vez mais rotulados como doenças.
Em reportagem publicada na semana passada, o jornal O Globo mencionou trechos de um artigo do chefe do Instituto de Psicologia da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, Peter Kinderman. “O DSM-5 vai baixar os limites de diagnóstico e aumentar o número de pessoas na população em geral vistas como tendo uma doença mental (...) Uma enorme gama de maus comportamentos humanos, objetos de muitas promessas de Ano Novo, vai se tornar doenças mentais”, comenta, ironicamente.
O jornal aponta ainda a opinião do professor emérito da Universidade de Duke, nos EUA, responsável por coordenar a revisão anterior do manual, publicada em 1994, Allen Frances. Ele pede para que seus colegas não adotem a nova versão do material e que os pacientes não aceitem diagnósticos “com base em avaliações comportamentais breves”.
O Correio ouviu a professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), a psicóloga Maria de Fátima Franco dos Santos, sobre o assunto.
Leia, a seguir, a sua entrevista:
Correio Popular — Qual a opinião da senhora sobre o DSM-5?
Maria de Fátima — É uma tentativa de fazer com que exista uma nomenclatura mundial para determinados problemas e esse é um fator importante. Agora, em geral, quem produz esse manual exagera. Eles colocam determinadas situações que são naturais de qualquer pessoa e acabam considerando isso como transtornos... como doenças. E isso não é de hoje que isso acontece, já tem um certo tempo. É um catálogo e como qualquer catálogo a pessoa pode seguir ou não. Achar que aquilo é uma “Bíblia”, que é a verdade absoluta, significa até menosprezar a capacidade humana.
A tristeza do luto como sinal de depressão, por exemplo, entra nessa questão do exagero?
O luto está mais ligado à vivência humana do que a um distúrbio. O ser humano precisa ter esse tipo de emoção. Mas isso acaba ao se problematizar a emoção. Aí é que está o perigo! Achar que alguém que está de luto tem a necessidade de tomar um antidepressivo por conta disso é perigoso. O luto é natural, é esperado. Existe um tempo que ele deve existir, que são de três a seis meses. A partir daí sim, se não for superado, o luto se torna patológico e a pessoa precisa de uma ajuda profissional. Agora, antes disso, não há porquê dizer que se trata de uma patologia.
Por que rotular os sentimentos como doenças?
Existe uma tentativa de, cada vez mais, cobrir um espectro maior de problemas humanos e aí vão para essa questão do exagero. Um exemplo é justamente o fato de desnaturalizar o luto. Isso é algo natural do ser humano, ele tem que sentir isso. Mas discutir sobre esses exageros é importante para que se perceba que catálogos devem ser considerados com uma certa reserva e não tomados como verdades absolutas.
Qual a razão de problematizar um sentimento que é natural?
Talvez, por trás disso, há uma questão ideológica.... de que qualquer sentimento tem de ser visto com ressalvas... de que o ser humano não pode sentir tanto, que seja até um problema o fato dele sentir emoções... Há essa visão de que o ser humano deva ser uma máquina. O homem-máquina é algo que a gente não deve jamais aceitar. Essa ideia de que o ser humano não pode ter tristezas, não pode sentir dor... Mas isso faz parte da vida, todo mundo tem que passar por isso.
A ideia do manual foi polemizar?
Não acho isso. Foi mais seguir aquela tentativa de especializar mais a medicina de um modo geral. Para cada problema existe aquele médico específico que vai lidar com aquela determinada situação. O que o manual apresenta vem ao encontro com essa tendência de especialização de tudo, que é até considerada perigosa em alguns momentos. O clínico geral pode ser, muitas vezes, muito mais eficaz em um tratamento do que um especialista, que não vê a pessoa de uma forma global, no seu todo. Há uma grande tendência de especialização das ciências médicas e acho que também exista a questão(econômica) dos laboratórios. Eles vivem dizendo que isso ou aquilo é patológico e que toda patologia precisa de uma medicação. E se isso precisa de uma medicação, se vende o remédio...
A diminuição do limite do que é um transtorno pode aumentar o número de pessoas consideradas com “problemas mentais”. Qual o impacto disso na sociedade?
O problema do rótulo é sempre muito negativo. Identificar pessoas como esquizofrênicas ou paranóicas não traz nenhum benefício para ninguém. O que importante é reconhecer naquela pessoa os problemas que ela tem e as potencialidades que ela tem para ultrapassar os problemas. E quando ela não puder fazer isso por si mesma, com a ajuda dos familiares ou amigos, aí sim é necessário fazer a busca por um profissional. Mas achar que qualquer pessoa, por qualquer crise, deva ser levada para um profissional de saúde mental e ser medicada é um exagero.