Na engenhosa narrativa de seu curta-metragem A Ilha das Flores (nome irônico para um local, na região metropolitana de Porto Alegre, onde campeia a miséria), o cineasta Jorge Furtado recorre repetidamente à imagem do polegar opositor, nome dado à capacidade do dedão da mão se unir ao dedo indicador, em um movimento análogo ao de uma pinça.Em off, o narrador do filme explica que o polegar opositor, aliado ao nosso “telencéfalo altamente desenvolvido” — em outras palavras, nosso cérebro privilegiado — nos diferencia da maioria dos seres vivos por permitir que executemos um sem-número de tarefas complexas com as mãos. A primeira delas, a mais primordial das tarefas, é a de empunhar ferramentas.Em outro filme, 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, bem mais notório e monumental que o modesto — ainda que extremamente inventivo — curta de Furtado, essa habilidade, conjugação de capacidades motora e intelectual, é ilustrada na famosa sequência inicial, na qual um primata (nosso ancestral direto, pois) descobre que um osso pode ser usado como uma arma. Uma arma que pode servir tanto para abater uma caça ou golpear um outro primata.Segundo Kubrick, surgia aí, na agressividade de seus macacos, o que milhões de anos depois seria dito por Thomas Hobbes (1588-1679): os homens, na disputa pelos recursos aos quais todos têm o mesmo direito e que são sempre escassos, estão em constante guerra contra todos os outros homens.Não parece ser outro o mote da série A Guerra dos Tronos, na qual “recursos” podem ser entendidos como territórios, cujo controle é disputado por famílias que se entregam a uma luta encarniçada e aparentemente sem redenção possível, repleta de intrigas e alianças que não raro descambam para a traição.Na história, as batalhas são travadas na porrada, com espadas, flechas, maças e machados, feitos para mutilar e amputar, coisas que o autor George R. R. Martin descreve com uma frequência incômoda — e é mostrado com detalhes pela versão da TV. Perdem-se muitos dedos e mãos em A Guerra dos Tronos, nas lutas ou como castigo.Na internet, discutem se o escritor não teria um fetiche. “Estou convencido de que ele tem uma obsessão inconsciente com mãos”, diz um internauta. Outro pondera que o combate corpo a corpo (a história é ambientada em tempos equivalentes à Idade Média) não poderia resultar em outra coisa que não ferimentos medonhos; além do mais, ser punido com a perda de membros naquela época era um dos piores castigos que se poderia receber.Fetiche ou não, o curioso é que a referência constante a mãos na obra de George R. R. Martin vai além da violência que estas sofrem: elas também dão origem a nomes que simbolizam poder, como a figura da “Mão do Rei”, uma espécie de procurador dos interesses reais cujo peito é adornado com um broche que representa uma mão repousando sobre uma espada; há também um ardiloso conselheiro do trono cujo apelido é “Mindinho”.Mas é claro que Martin não é autor da simbologia das mãos como representação do poder; antes, se apropriou dela e dela faz bom uso, ecoando o que em nossa cultura, desde tempos imemoriais, se estabeleceu como sinônimo de exercício da força: mão de ferro, coup de main (golpe de mão, expressão francesa que designa um ataque surpresa, militarmente falando). E uma série de outras expressões surgidas da capacidade que o homem adquiriu quando ainda nem era bem homem: a de segurar e brandir algo para golpear e estabelecer seu domínio. Coisas de quem tem, como mostrou Jorge Furtado, polegar opositor e telencéfalo altamente desenvolvido.