REVOLTAS DE JUNHO

Livro faz retrato de protestos de rua

Professor passa 10 dias nas manifestações para finalizar trabalho sobre a história política do País

Bruna Mozer
bruna.pinto@rac.com.br
09/07/2013 às 08:37.
Atualizado em 25/04/2022 às 09:25

“Revoltas de Junho” é o nome que Marcos Nobre, professor e filósofo político da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), deu ao movimento que tomou conta dos noticiários e das conversas nas últimas semanas: manifestações que chegaram a reunir cerca de um milhão de pessoas em uma única noite nas ruas do Brasil. Em Campinas, 35 mil saíram em passeata pelo Centro da cidade. Nobre lançou no dia 27 o e-book “Choque de Democracia - Razões da Revolta” que escreveu em dez dias. Para isso, participou dos protestos em São Paulo, percorreu as passeatas de mais de cinco horas, intensificou a leitura das discussões na internet em meio a noites muito maldormidas. O resultado foi um trabalho que está disponível somente na versão digital e que propõe uma reflexão sobre o momento histórico da democracia brasileira.

Em entrevista ao Correio, por telefone, na última quinta-feira, o professor disse acreditar que os protestos serviram como um “novo ar” à sociedade, dando pontapé inicial ao rompimento de uma blindagem criada pelo sistema político contra a força popular.

O trabalho de Nobre é uma espécie de “livro instantâneo” em que o autor lança o material no calor dos acontecimentos. Mas esses escritos fazem parte de um estudo maior: um livro que está escrevendo há seis anos sobre o período de democratização do Brasil — de 1979 (quando assume o último presidente da Ditadura Militar) até a eleição de Dilma Rousseff, em 2010. Com lançamento previsto para este semestre, veio a proposta da editora de publicar um compacto, que começou a ser elaborado no dia 17, quando as manifestações já ganhavam força nas principais capitais. Nesse dia, 65 mil pessoas saíram às ruas em São Paulo, fortalecidos pelos confrontos entre os manifestantes e a polícia na semana anterior. “Esse movimento soava como algo esperado para mim. Na minha maneira de entender, a democracia como estava não poderia durar muito. Achava que as pessoas não aceitariam caladas.”

Para o filósofo, as manifestações que aconteceram recentemente ainda são um processo de aprendizado e os resultados não devem parar por aqui. De acordo com ele, até que as mobilizações acontecessem, a sociedade não praticava a democracia de forma plena. “Para mim, democracia é o cotidiano das pessoas, tem que penetrar fundo no dia a dia.” Mas para ele, o estado de acomodação que o próprio povo brasileiro se colocava antes desse episódio político refletia um processo que ele chama de “blindagem”, criada para e pelo próprio sistema governamental.

O início desse modo de administrar, em que governo e Congresso se colocam em uma zona de conforto, diz Nobre, surgiu com o impeachment do presidente Fernando Collor (em 1992) quando políticos se articularam para se protegerem da sociedade, ampliando cada vez mais as alianças e minando a oposição que hoje, na sua avaliação, é praticamente invisível. “Para presidente não ser alvo de impeachment, se manter no poder, ele precisa não só de uma maioria no Congresso, mas de uma supermaioria e isso se mantém até hoje.” Esse cenário se agravou ainda mais com a chegada do PT no poder que, ligado aos movimentos sociais, foi o maior opositor à gestão tucana de Fernando Henrique Cardoso.

Em seu livro, Nobre chama esse sistema de “peemedebismo”. A origem da denominação está sustentada no Centro Democrático, o “Centrão”, como ficou conhecido o grupo de partidos (PMDB, PFL, PTB, PDS) que formaram a Assembleia Constituinte de 1988 e tinha considerável proximidade com o governo da época.

“É uma geleia geral de partidos que temos hoje. Uma base uniforme que o governo constrói. Há oposição e situação dentro da própria situação. Uma maneira de bloquear as transformações mais profundas na sociedade”, afirma. Confira trechos da entrevista abaixo.

Para Marcos Nobre, as manifestações abriram um horizonte de reforma radical do sistema político

Correio — Qual a conclusão que o senhor chegou ao estudar esse momento?

Marcos Nobre — O meu sentimento pessoal foi de entusiasmo. Eu olhei e disse: a democracia no Brasil está viva. Tinha uma pasmaceira, um sistema político blindado. Se está bloqueado o caminho de influenciar o sistema político, a saída apropriada é a rua. Foi essa maneira de dizer claramente que essa blindagem tem que acabar.

E essa blindagem acabou?

Essa aí é a “questão de um milhão de dólares”. Tem uma coisa muito importante: isso já deu em algum lugar. A sociedade está muito mais avançada do que o próprio sistema político. Uma coisa já aconteceu: com essa “Revoltas de Junho” abriu-se um horizonte de reforma radical desse modelo. Se a mudança vai se realizar num curto espaço de tempo, não sabemos. Mas é como se tivesse entrado um ar novo.

Mesmo com o esvaziamento dos movimentos, esse novo ar tende a permanecer?

Nada mais será como antes. Esse esvaziamento é uma certa trégua. É como se o povo dissesse: a gente deu o recado e damos um tempo para uma resposta. Ninguém é tolo de achar que as coisas se resolverão do dia para a noite. Querem uma sinalização clara de que haverá mudança. Se não for clara, as pessoas voltam às ruas. Pode demorar seis, nove meses, mas voltam.

Como foi o processo de produzir o e-book?

Houve uma decisão da editora. Mas, do meu lado, a minha possibilidade de sistematizar a experiência das ruas. Sentia muito nos comentários, nas discussões nas redes sociais, certo atordoamento. Do lado do sistema político, é compreensível que estivessem atônitos. Mas senti também que do lado da rua havia muitos questionamentos. Achei que era uma maneira de organizar essa experiência. O movimento é muito novo.

E por que esse atordoamento?

Comparando com o impeachment do Collor (Fernando Collor) em 92. Lá tinha uma unidade, uma organização muito clara e um objetivo muito claro. Cada pessoa que estava lá abriu mão das diferenças políticas em nome de um objetivo comum. Tinha partidos, movimentos sociais, palanques, comícios. Dessa vez, as pessoas pensaram: não precisamos deixar nossas diferenças de lado para ir à rua. A rua tem todas as diferenças. Isso assustou.

As pessoas saíram às ruas com bandeiras diferentes. A falta de um objetivo único atrapalha a chegar em algum lugar?

É bom porque mostra que não precisa mais de unidade forçada (partidos, movimentos sociais etc). Não precisa mais ter uma reivindicação única. O traço comum é esse: a democracia que temos não é suficiente. Abre-se um horizonte para as reivindicações. 

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