ANDRÉ FERNANDES

Linguagem jurídica no divã

02/10/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 02:12
andré fernandes ( Cedoc/RAC)

andré fernandes ( Cedoc/RAC)

Recentemente, no final do expediente, entrou uma senhora no gabinete dizendo que queria ver o “acordeão” do processo. Disse para ela esperar e solicitei o processo do cartório. Como já desconfiava, a senhora não queria um acordeão, mas informações sobre o “acórdão”, o nome dado à decisão colegiada dos tribunais (aqui, no baixo clero da hierarquia judicial, chama-se sentença), que foi juntado naquele processo.Alguns dias depois, recebi uma ordem judicial de outra comarca, cuja finalidade consistia em determinar o cumprimento de um mandado de prisão, com a seguinte pérola ao final do despacho: “Preso, encaminhe-se o devedor ao ergástulo público”. Ergástulo é o outro nome de cadeia. Deu vontade de soltar o sujeito, para o bem do mundo do direito...Nós, os profissionais do direito, sofremos de uma incapacidade, que vem desde a faculdade, de nos comunicarmos com o resto do mundo de maneira clara. Vivemos da palavra lida, interpretada e falada, mas somos incapazes de nos fazermos lidos, interpretados e falados. Dizemos tudo para nós e nada para os outros, justamente aqueles que são afetados diretamente por nossas decisões e conselhos.Mesmo no âmbito jurídico não é diferente: uma vez, participei de um debate em que não consegui entender as ideias das duas pessoas que dividiam a mesa comigo. Alguém mais inteligente da plateia perguntou-me se, entre gregos e troianos, minha posição teórica seria intermediária. Respondi que não sabia, porque não havia entendido nem o grego e nem o troiano. E, imediatamente, corrigi-me: como estava “boiando”, minha posição só podia ser a intermediária mesmo, porque, afinal, o mar Egeu separava ambos os territórios. E, no lugar da tábua de salvação, agarrava-me a um dicionário...Várias são as causas dessa linguagem apenas acessível aos “iniciados”: divisão do Direito em áreas cada vez mais especializadas, pedantismo bolorento, instrumento de controle social, tecnicismo exagerado, latinismo retrógrado, vaidade vocabular, manipulação retórica, violência simbólica erudita e autoritária e, como bem lembrou uma amiga de longa data, o “adjetivismo”, a mania de acrescentar dois, três ou quatro qualificativos aos substantivos, os quais, depois de tanta adjetivação, acabam perdidos no contexto da frase.Se o leitor acha que já sabe tudo sobre o recurso dos embargos, em razão do julgamento do mensalão, engana-se. Revendo minhas velhas anotações de aula sobre o assunto, ali consta que “os embargos têm natureza multifária (multi o quê?) e são de espécie anfíbia (será que dormia na cadeira?), podendo ser classificados em embargos declaratórios, embargos de divergência, embargos infringentes e embargos infringentes do julgado (conhecidos também por embargos menores ou embarguinhos)”. De lá para cá, não houve qualquer perigo de melhora no hábito de adjetivar...Não estou aqui a defender uma linguagem totalmente coloquial na comunicação jurídica. Muitos termos técnicos são necessários e muitas expressões latinas representam um saber perene acumulado, um princípio já consolidado pelo Direito ou, até hoje, não têm uma tradução fiel para nossa língua. O habeas corpus, que não é de origem romana, mas inglesa, é um bom exemplo disso. Etimologicamente, quer dizer, “que tenhas teu corpo”; para um réu que conheci, tinha um interessante significado: depois de soltá-lo no final de uma audiência, por ordem do tribunal, ele me agradeceu por ter recebido o “abre as porta”. Nada como a sabedoria popular...A preocupação com esse linguajar hermético já “sensibilizou” até mesmo o legislador. Houve projeto de lei no Congresso Federal, obrigando os juízes ao emprego de uma linguagem simples, clara e direta, arquivado posteriormente. Ainda bem, porque a solução do problema não passa por uma resposta legal, mas por uma mudança cultural.Poupando o leitor do latinório básico, já se foi o tempo para um “vetusto vernáculo manejável no âmago dos sodalícios judiciais que, a partir da peça inaugural, fulminava as súplicas petitórias, insculpindo um vácuo de reverberação no âmbito de cognoscibilidade dos utentes forenses, sem que se sobejasse no beneplácito destes”.É hora de aposentar os substantivos de fraque e cartola e os adjetivos de luvas e polainas, em prol de uma linguagem acessível ao entendimento alheio. Em “juridiquês”, malgrado minha reverência ao libelo de outrem, cuida-se do que especulo. Ou, em português, com respeito à divergência, é o que penso.

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