IG-ANDRE FERNANDES (CEDOC)
A desigualdade econômica no Brasil é uma das mais exorbitantes do mundo. Muitos brasileiros consideram essa desigualdade injusta e isso justificaria uma maior taxação dos ricos em favor dos pobres. Então, por um exemplo hipotético, vamos começar pela redistribuição de renda pelo Eike Batista, cuja fortuna alcançou o patamar de US$ 53 bilhões no ano de 2012, segundo a Revista Forbes.
Suponha que o Estado tire US$ 14 bilhões de nosso magnata, apenas para facilitar o cálculo e sem nenhum prejuízo para ele, já que não conseguiria gastar o “troco” até o fim da vida, podendo reinvesti-lo a ponto de recuperar o valor inicial. E, depois desse confisco, o burocrata estatal resolve dividir essa polpuda soma entre os beneficiários do Programa Bolsa Família, que alcançam, aproximadamente, 14 milhões de pessoas, conforme os dados do último ano, disponibilizados no portal próprio.
Cada uma embolsaria R$ 1 mil e, considerando que boa parte delas vive em família, isso proporcionaria algum alívio à sua triste situação social. Mas a ideia tem fortes opositores, os quais argumentam que não existe injustiça social, porque a desigualdade econômica não foi resultado do uso da exploração ou da fraude, ao menos em regra, mas de escolhas feitas livremente numa economia de mercado.
Vamos para um exemplo real. Li, numa seção de frases corridas de um jornal, a seguinte afirmação de uma celebridade, a fim de justificar o fenômeno da liberdade de escolha de sexo, baseado num certo domínio do indivíduo sobre a própria corporeidade: “Reivindicamos o direito de ser dono do próprio corpo. Não importa o aparelho genital com que nasci”.
Nas entrelinhas da objeção ao primeiro exemplo e da argumentação do segundo, há um fundo comum: uma visão de mundo que prega uma liberdade com poucos limites, a ponto de quase endeusá-la, já que ocupa o trono no reinado dos direitos e garantias individuais. Essa ótica, chamada libertária, defende três grandes ideias.
A primeira defende uma total aversão ao paternalismo estatal. Leis de proteção às pessoas, como o cinto de segurança, airbag, cigarros, álcool ou programas de vacinação e de regulação calórica da alimentação pública, não são bem-aceitas, porque, ainda que tenham em vista o bem comum, violam o direito do indivíduo de decidir sobre os riscos que pretende assumir livremente.
Desde que não haja riscos para terceiros, as leis não podem dosar um certo equilíbrio entre os riscos e benefícios sociais.
A segunda é contrária a qualquer legislação de conteúdo moral. As leis não devem promover noções de virtude ou expressar as convicções morais da maioria, porque seria uma coerção indevida à liberdade de atuação do indivíduo. A prostituição pode ser moralmente contestável, porque gera o uso do corpo para lascívia alheia, provoca a própria instrumentalização do corpo para o sustento material, cria uma teia de relações sociais descartáveis e desrespeita a dignidade da mulher. Mas isso não impede a edição de uma lei que assegure direitos trabalhistas às profissionais do sexo, já que a clientela é formada por adultos conscientes de praticá-la e o trabalho sexual é feito geralmente em situação de risco.
Por fim, os libertários opõem-se veementemente a qualquer programa oficial de redistribuição de renda, porque entendem ser isso uma faculdade para um cidadão rico e não um dever social a ser pago por um imposto exclusivamente criado para isso. Não haveria diferença substancial entre um governo “pai dos pobres” e os assaltos de Robin Hood às carruagens que transitavam pela floresta de Sherwood. Qualquer taxação para esse fim seria uma coação injusta. Para alívio do Eike Batista...
Em suma, o credo libertário propõe que os indivíduos têm direitos tão inalienáveis e abrangentes que levantam a questão do que cabe ao Estado fazer, se é que ainda sobra alguma coisa. Apenas um Estado mínimo, limitado a fazer cumprir contratos e proteger as pessoas contra a força, o roubo e a fraude, é justificável. Qualquer Estado com poderes mais abrangentes viola os direitos dos indivíduos de não serem forçados a fazer o que não querem e, portanto, não se sustenta.
A ética libertária tem um apelo muito forte, mas em muitos casos, acaba por promover ideias que mais se aproximam da libertinagem e da permissividade sociais, abrindo novos e perigosos campos para aventuras existenciais que podem provocar o agravamento humano, porque não vinculam a liberdade à responsabilidade, nem o bem da pessoa ao respeito de sua própria natureza. Com respeito à divergência, é o que penso.