RODRIGO DE MORAES

Liberdade, beleza?

Rodrigo de Moraes
19/06/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 18:58

No filme "The Doors" (1991), de Oliver Stone, um assistente de produção de um programa de auditório (talvez o lendário "Ed Sullivan Show", não me lembro bem) se dirige à banda que espera nos bastidores, antes de subir ao palco. Engravatado, o cabelo arrumadinho contrastando com o visual colorido, meio riponga do cabeludo quarteto liderado por Jim Morrison, o sujeito é cheio de dedos ao passar instruções à banda. E se preocupa em adotar um jargão que, na visão dele, é próprio de roqueiros e rebeldes afins daquele final dos anos 60: “Groovy! Groovy!”, repete cioso e desajeitado o rapaz uma gíria da época, algo como “Maneiro! Maneiro!”. Como um pai que, na tentativa de se aproximar do filho adolescente e de seu universo, adotasse sua maneira de falar.

Isso me ocorreu após ler na Folha Online a frase de um oficial da PM à reportagem antes do começo dos protestos de anteontem em São Paulo, que levaram estimadas 350 mil pessoas às ruas (a maior concentração desde os protestos anti-Collor, no começo dos 90). “Liberdade democrática de se manifestar hoje, beleza?” disse o major da PM Wilhelm, que havia garantido aos manifestantes o direito de seguir o trajeto que quisessem, “inclusive fechar vias”, afirma o texto.

As palavras do major podiam até soar empáticas com o movimento, como aquele pai que tenta ser “massa” ao repetir palavras próprias da realidade do filho. Mas pareciam desajeitadas como as do engravatadinho do filme sobre o The Doors, repetindo uma gíria de uma maneira que denunciava a sua falta de familiariedade com ela. Talvez fosse a primeira vez que o major Wilhelm articulava a expressão “liberdade democrática”; talvez ele mesmo tenha estranhado a maneira como essas palavras soavam, como se fossem uma grande novidade para ele.

Digo isso porque, como se viu, a postura da Polícia Militar paulista nas manifestações anteriores nada teve de tolerante ou compreensiva. Alcançou níveis de truculência que provocaram espanto, mesmo a instituição tendo uma ficha corrida de arbitrariedades bastante conhecida. Em um vídeo que se espalhou pela internet, um rapaz dança de maneira ostensiva em uma esquina próximo à região dos protestos na capital paulista. Não dá para saber se ele efetivamente integra os protestos, ou se só está fazendo chacota. Sua postura, de qualquer maneira, é clownesca. No entanto, os policiais que se encontram a poucas dezenas de metros dele não acham graça nenhuma, e não hesitam em disparar (uma bala de borracha ou uma bomba de gás lacrimogêneo). O “dançarino” se esquiva no último momento e por pouco não é atingido — dá para ver as fagulhas do disparo passando a centímetros dele.

Essa reação absolutamente desproporcional dos policiais frente a um engraçadinho é uma amostra dos níveis que a repressão policial podia ter atingido (inclusive com números trágicos) não fosse a indignação geral que essa violência estatal suscitou. A repercussão foi tamanha que até artistas/celebridades posaram para campanha publicitária com maquiagem que reproduzia contusões provocadas pelas infames balas de borracha (que causaram ferimentos sérios inclusive em jornalistas que cobriam os protestos). Até uma estilista famosa entrou na onda, dando dicas de como se vestir (de maneira funcional, acredito) para as manifestações e como se proteger dos efeitos do gás...

Diante desse quadro a favor dos manifestantes, a polícia se portou de maneira exemplar (quem diria?) diante do oceano de gente que tomou as ruas de São Paulo anteontem. Claro, a decisão de baixar a guarda, de deixar de lado estratégias ofensivas (cassetetes, bombas e balas) diante de uma multidão em sua esmagadora maioria pacífica não foi, claro, da própria PM, que é subordinada ao governo do Estado. Mas não deixa de ser um alento que as chamadas “forças de segurança” tenham se limitado a observar (com uma ou outra exceção) a evolução dos manifestantes pelas principais vias da maior cidade da América Latina.

Quem sabe se, limitando-se a observar o fluxo interminável de manifestantes na noite da última segunda-feira, os policiais militares não tenham começado a se familiarizar com o som e o sentido das palavras “liberdade democrática”, ditas de maneira desajeitada pelo major PM Wilhelm? Uma liberdade cujas possibilidades ainda estamos, todos, aprendendo a conhecer.

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