Quando morre uma pessoa como o jornalista Ruy Mesquita (o que ocorreu faz alguns dias), figura importante da nossa profissão, os lamentos dos amigos e admiradores o transformam numa espécie de super-homem; cujo alto do pedestal no qual é entronizado só se avista dobrando bem a cabeça para trás. Está claro que esta louvação tem lá sua justiça. Mas, muitos hão de perguntar: e o homem? Que tal era o Ruy Mesquita de carne e osso, a alimentar até pequenos sonhos, como todas as pessoas? Durante três anos, no começo dos setenta, trabalhei no Jornal da Tarde, que o ilustre falecido criou; daí achei por bem escrever esta crônica para mostrar um “Doutor Ruy” que pouca gente conheceu. Porém eu sim, de resto por absoluto acaso, pois nunca troquei com ele a mais longínqua ou remota palavra. E hoje quando já está em repouso naquele lugar que alguns chamam de “última morada”, vale, ao lado da lembrança do combativo editorialista, vigoroso a defender suas convicções, esta outra face da moeda; expressa em pequenos gestos amenos certamente também recordáveis. Ainda mais que Ruy era austero, raramente papeava na redação, bem ao contrário de Carlão, o extrovertido irmão, também jornalista, que morreu aos 40 anos.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que o JT foi um celeiro de craques. Trabalhei como copidesque, primeiro de esportes depois da geral, e a nossa turminha era formada por profissionais que ainda hoje estão aí, brilhando. Alberto Helena Júnior é estrela de programas esportivos em rádios, jornais e TVs; “Paquinha”, ou Luís Fernando da Silva Pinto, é correspondente da TV Globo em Washington; Moacir Japiassu é escritor de fôlego e brilho, com vários romances e um livro de crônicas, “Carta a Uma Paixão Definitiva”, absolutamente delicioso; Regina Echeverria se tornou biografa, entre outros, de Elis Regina e Cazuza; Olga Vasone comandou, durante largos anos, a bancada do Globo Rural; Percival de Souza segue sempre perfeito na atuação de comentarista televisivo especialista em segurança pública; Carlos Brickman, colunista deste Correio, dispensa apresentações; e, “last but not least”, Miguel Jorge, que até ministro de Estado foi. Pois esse grupinho, todas as semanas, fazia um bolão da Loteca (Loteria Esportiva), pioneira da atual enxurrada de jogos da Caixa. Assim, cada um dava dinheirinho para apostas encaminhadas à lotérica por um mesmo contínuo, sempre; ele funcionava como uma espécie de mascote chamativo da sorte. Tratava-se de troço meio sagrado, todos nós respeitávamos a liturgia do jogo.
Um dia eu estava na rua São Luís quando lembrei que não pagara a minha cota na fezinha e voltei à redação, que ficava no quarto andar do prédio da Major Quedinho. Ao sair do elevador dou de cara com o contínuo que trazia na mão várias apostas. Imediatamente bendisse a sorte de tê-lo encontrado, porém ele logo explicou que aqueles não eram os jogos da nossa turma. Perguntei, claro, de quem eram, porém ele sorriu afirmando se tratar de segredo, total e absoluto. Já avaliando que poderia ser de algum dissidente do grupo, desci com o funcionário; na rua, para amaciá-lo, convidei para lanche no Mutamba, o barzinho ao lado do jornal. Lá, entre refrigerantes e sanduíches, insisti, com boa cantada; jurei que não revelaria a ninguém etc. O rapaz capitulou: — Os jogos são do doutor Ruy.
— De quem? — Tomei um susto — Do dono do jornal?
— Dele mesmo. Toda semana crava seus palpites.
A verdade é que aquilo me deixou excitado. O doutor Ruy Mesquita jogando? Até que após alguns outros comentários acabei lançando nova pergunta, a indagar se ele já havia faturado alguma vez.
— Já — foi a resposta — não uma, duas.
Nessa altura cheguei a coçar a cabeça, pasmo. Abri os braços: — E de quanto foram as boladas? Iguais às do Dudu da Loteca?
O contínuo sorriu e, após mais insistência, deu os números dos prêmios, para usar boa palavra, abiscoitados pelo jornalista, ambos em concursos com centenas de ganhadores.
Em valores de hoje, numa das vezes doutor Ruy faturou 30 reais; da outra, 20... O que talvez o tenha levado a refletir, em algum instante, ser mais fácil enfrentar, como enfrentou, os generais e censores da ditadura, do que levantar na Esportiva um prêmio de tirar o fôlego. Ah, sim, o nosso grupo do bolão da redação nunca ganhou nada. Nem mesmo 10 paus...