CECÍLIO ELIAS NETTO

Josefina Benedita

Cecílio Elias Netto
05/04/2013 às 05:01.
Atualizado em 25/04/2022 às 21:43
ig-cecílio (AAN)

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Nunca, com certeza, saberei, eu, se a memória do homem é uma dádiva ou um castigo. Memória são as lembranças. E elas podem ser boas ou más, apaziguadoras ou torturantes. Quando boas, as lembranças carregam a saudade consigo. E, quando más, chegam com dores e remorsos. A memória, enfim, são recordações, reminiscências, um ter e um estar, um viver e um reviver, um conservar e um permanecer. Dádiva ou castigo?

Reconheço ser homem de memória, sem saber se isso é um bem ou um mal. Pois, em mim, passado e presente se fundem e o ontem parece repetir-se agora. E o agora se faz repetição do ontem. Incapaz de resistir, vejo-me espectador assistindo ao mesmo filme com cenários, atores, diretores, protagonistas e coadjuvantes diferentes. Mas o enredo é o mesmo. E a história se altera apenas no acidental.

Quando vem à discussão a situação profissional de nossas heróicas domésticas, penso em Josefina Benedita, a Fina. Eu tinha apenas 4 anos quando ela foi levada à nossa casa. Éramos muito pobres, em plena 2ª Guerra Mundial. Josefina Benedita era uma jovenzinha de apenas 15 anos, vinda da roça. Magérrima, vestida quase que com andrajos, todos os seus pertences cabiam numa pequena sacola de pano. Analfabeta, assustada, sem nada falar, parecia um bugre.

Sem pais, sem família, fora levada à nossa casa por uma comadre de meus pais, moradora em sítio, que pedia que a moça fosse contratada como empregada doméstica. Recordo-me do verdadeiro pânico de minha mãe: mal tínhamos o que comer e a casa era pequenina, como ter outra boca a alimentar, outra pessoa para dormir? E como pagar a mocinha? A comadre implorou, os olhos de Josefina Benedita expressavam desespero. E ela acabou ficando: por cama e comida.

Com o tempo, meus pais espantaram a pobreza. E a vida se tornou mais serena. Dona Josefina Benedita Ferreira Gomes de Oliveira, a Fina, está, até hoje, conosco. A mocinha frágil, analfabeta, tornou-se — após a morte de meus pais — a matriarca da família, a que dá ordens, que chama a nossa atenção, que repreende netos e bisnetos. Ela se tornou uma dama. Meus pais deram-lhe escola, registro empregatício, plano de saúde e até mesmo uma casinha, caso — na ausência deles — ela quisesse ter o seu canto de viver. Aposentada, Fina fez questão de ficar morando com minha irmã caçula — que ela viu nascer e, hoje, com mais de 60 anos — sentindo-se na obrigação de “cuidar da menina”.

Essa mulher — próxima dos 85 anos — acompanhou a nossa vida em todos os momentos, como num casamento indissolúvel: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na pobreza e na riqueza. Mais do que uma servidora, ela sempre foi fiel companheira, leal, amorável, participante. Josefina Benedita era e é uma doméstica e é isso que eu estou querendo dizer: doméstica não é uma simples empregada, uma simples profissional. Domésticos são pessoas do “domus”, da casa, do lar — que fazem parte da intimidade e da história das famílias. Servidores são passageiros. E impessoais.

Josefina Benedita — quando nos casamos, deixando a casa paterna — foi a amiga mais próxima de minha mãe, acompanhando-a em todas as situações. Elas iam juntas a chás, a concertos, a jogos carteados entre amigas. A menina da roça se tornou dama, querida e amada por todos os que a conheceram e ainda conhecem. E — carregando, conosco, o exemplo de meus pais e de Fina — nós, os filhos, demos e damos, às domésticas, o mesmo carinho, respeito e consideração. Mais do que isso: damos gratidão. Por serem parte tão essencial de nossas vidas e de nossas famílias.

Alguém dirá — e, certamente, será um desses intelectuais que conhecem a vida apenas pelos livros — que isso é uma forma de paternalismo, de resquícios colonialistas. Não, não é: trata-se de humanismo e de uma escala de valores. Não são os doutores que constroem o mundo, mas os mais humildes, os mais simples, os que dão sustentação a uma sociedade que apenas precisa ser mais justa, honesta e reconhecida.

Se domésticos forem apenas profissionais burocratizados, eles se tornarão tão somente servidores, impessoais e dispensáveis. Os empregados domésticos são parte de nossa intimidade familiar, os que mais sabem e participam de nossas vidas. Como imaginar sejam, eles, apenas funcionários impessoais? Legalizar-lhes o trabalho é um dever sagrado, que nem sequer precisaria ser discutido. Mas torná-los apenas burocratas junto a famílias, isso é abalar alicerces de confiança, de amor, de solidez familiar. Por que o medo de admitir que domésticos são pessoas de nossa família?

Pais podem passar, filhos vão-se embora — há domésticos que ficam. Josefina Benedita é meu amado e comovido referencial.

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