ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)
Andei revendo a série "Jazz", o colossal documentário de Ken Burns que o GNT exibiu ao longo de semanas no começo dos anos 2000. Levado ao ar originalmente em 2001 pela americana PBS, "Jazz" é uma produção audiovisual ambiciosa, de fôlego (são 19 horas de duração) e tão rica e caudalosa quanto o gênero musical que se propõe a retratar.
Há um dado significativo na biografia de Burns, que já explorou em seus filmes temas norte-americanos por excelência como a Guerra de Secessão e o beisebol: ele perdeu a mãe aos 11 anos, fato que marcou sua vida ao ponto de seu sogro, um psicólogo, dizer que o conjunto de sua obra era uma tentativa de “trazer de volta à vida pessoas que se foram há muito, muito tempo”.
De fato, há algo de melancólico na infinita sequência de imagens em preto e branco, em fotos e película, que retratam gente e coisas que há muito deixaram de existir. Há uma gravidade na voz do narrador Keith David capaz de conferir dignidade ao mais obscuro e sofrido músico de jazz. Mas há também alegria e paixão nos depoimentos de nomes como o trompetista Wynton Marsalis, membro mais notório do “clã” Marsalis, formado por instrumentistas que injetam vitalidade no jazz contemporâneo sem perder de vista os arquétipos do gênero.
Acima de tudo, porém, há um tom de assombro e reverência pelos artistas que promoveram uma ruptura sem precedentes no modo de se tocar e pensar a música ocidental. Uma ruptura centenária, que tem suas raízes na subversão do tempo rítmico das bandas marciais, muito populares na Nova Orleans da virada dos séculos 19 e 20.
Atribui-se a um lendário cornetista chamado Buddy Bolden a criação de um andamento batizado de “big four”, que quebrou o tempo quadrado, reto, militar da marcha, dando origem ao ritmo sincopado que está na origem do próprio jazz.
Arrisco dizer que Ken Burns, acima de sua evidente paixão por ícones como Louis Armstrong, Duke Ellington e outros nomes superlativos do jazz da era de ouro, entre os anos 1920 e 40/50, está especialmente interessado naqueles nomes que promoveram uma segunda revolução na música — ou uma revolução dentro do próprio jazz. Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Miles Davis, John Coltrane, Thelonius Monk, Sonny Rollins, Ornette Coleman, Max Roach, Charles Mingus — a lista é longa — ousaram trilhar terrenos musicais desconhecidos. Sofreram por isso, mas se saíram com alguns dos sons mais belos, estranhos e inventivos já ouvidos pelo homem. E também há algo heroico neles: os entrevistados são unânimes em dizer que essa turma subia ao palco disposta a correr riscos, noite após noite, tamanha era a ousadia musical de suas criações. Uma ousadia que podia resultar em sucesso retumbante ou em desastre absoluto.
Nos anos 40, Thelonius Monk trabalhou como pianista residente do Minton’s, uma casa noturna no Harlem novaiorquino que abrigou os fundadores do be-bop. Desenvolveu uma maneira curiosa de tocar, com os dedos estendidos, que executavam fraseados hesitantes, econômicos e definitivos (“São perfeitos exemplos de lógica”, definiu Wynton Marsalis). Monk foi um músico cuja genialidade, em um primeiro momento, acabou relegada a segundo plano por seus modos excêntricos: passava dias sem falar com ninguém, se apresentava com uma coleção de chapéus exóticos e, no meio de concertos, se levantava para dançar, como em êxtase.
Algumas de suas harmonias eram tão intrincadas que, não raro, os instrumentistas que o acompanhavam se perdiam no meio da música, experiência que um deles chegou a comparar a “despencar num poço de elevador”. Apesar disso, Thelonius Monk legou standards do jazz moderno, como "Epistrophy" e "Straight no Chaser", e é o segundo compositor de jazz mais gravado de todos os tempos — o primeiro é Duke Ellington. A diferença é que Ellington é autor de mais de 1000 composições, enquanto Monk escreveu “apenas” 70. Prova de que o comprometimento artístico e a recusa em ceder a padrões de música mais “consumíveis” também são capazes de gerar obras maiores que a vida e maiores até que o próprio tempo.