CECÍLIO

Já que tá que fique

15/11/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 12:57

Há gente boba em minha terra que tem vergonha de ser chamada de caipira. Como não sou bobo, orgulho-me disso. Ser caipira — e, em especial, ser caipiracicabano — é privilégio. E um modo de ser, e um estado de espírito. O nosso falar é música para os ouvidos, não sei se dos outros também. Mas se, na China, ouvir-se alguém falando porta, torta, corda — com os erres arrastados — não haverá dúvida: é caipiracicabano.Essa caipiracicabanidade tem rasgos de sabedoria que apenas se consegue alcançar quando se está na mata, na água e com o peixe. Pois caipira, em língua tupi, é isso: caá (mata) i (água) pira (peixe). É ou não privilégio? E, com uma vara de pescar, à beira do rio, cercado pela mata, o caipira medita no silêncio e recolhe o entendimento de viver. Sem complicação.Ultimamente, diante do terror urbano, deixei de aguardar soluções, reações, mudanças, reacertos. Uma recente pesquisa revelou que 99% — sim, 99%! — dos brasileiros se confessam cansados, exaustos. Eu não estou entre eles, pois descobri um recurso admiravelmente simples para ter serenidade, mas isso eu conto qualquer dia desses. Ora, esse cansaço brasileiro é — no meu entender — muito mais cansaço moral do que físico. Tamanha é a desordem que quase mais ninguém sabe para onde ir, o que esperar, em quem ou em quê confiar. Trabalhar deixou de ser uma ação de sobrevivência para se transformar num desesperado vício para fugir. De quê? De tudo.Desorganiza-se o pouco que restava da ordem moral e jurídica, enquanto a religiosa — através da indústria da fé de seitas evangélicas — tornou-se um mercado altamente lucrativo. Já se regulamentou a prostituição, para alegria e satisfação dos proxenetas e dos cafetões e cafetinas. Já se pretende a descriminalização do aborto, permitindo que celebridades discutam a questão que arrepia até mesmo filósofos e pensadores, de tão grave e complexa. Liberou-se, em muitos lugares, a maconha — porta de entrada para outras drogas — de forma a transformá-la em indústria de altíssima rentabilidade, como ocorre na Califórnia e em alguns estados estadunidenses. E estatizada no Uruguai. Fernando Henrique — um dos patronos da liberação da maconha — deve estar feliz, pois, com a idade que tem, não verá a ruína moral que ele ajuda a causar numa sociedade já doente.Não há quem não se queixe do trânsito, seja nas grandes, médias ou pequenas cidades. O automóvel está perdendo terreno para a bicicleta, tais os congestionamentos, a falta de lugares para estacionar, essa Babel que todos conhecemos. Os Black Blocs — que não passam de vândalos e bandidos mascarados — têm apoio de pensadores e de algumas áreas jornalísticas. De corrupção, quase mais ninguém fala, pois virou o “pão nosso de cada dia”. O PT não está mais sozinho, como nunca esteve. Tiraram a máscara do PSDB e, a partir de agora, haverá silêncio, pois ninguém é tolo de atirar pedras no telhado do vizinho se o seu é de vidro.Ora, não dá para ficar desatando os nós do terror de nossa era. Pois, quem arriscar-se a fazê-lo perderá o resto da vida para ficar alinhavando horrores. E, no entanto, as maravilhas, o bem, o bom, as conquistas estão diante dos olhos que, embaçados, não conseguem ver. O mal, por enquanto, está vencendo o bem.E, ao referir-me à sabedoria do caipira, foi justamente nela que pensei como solução ou ponto de partida. Estamos na encruzilhada, não? E encruzilhada é, sempre, um cruzamento de caminhos. Sem saber para onde ir, fica-se imobilizado nela, como se fosse o centro do mundo. E o é para cada homem, para cada sociedade. Nela, o homem e os povos detêm-se para refletir, pensar, tomar a decisão para onde ir. O caipira entende disso com sabedoria e intuição.Quando não se encontra saída, quando não se sabe para onde ir, quando se vê desnorteado, o caipira para no centro da encruzilhada. E pensa e fala: “Já que tá que fique”. Talvez — e não mais do que talvez — o próprio povo não esteja querendo que valores morais, familiares, cívicos surjam, novamente, dos escombros. Se a maioria quer assim, que se há de fazer? Nada, a não ser aguardar o que virá, quase sempre o pior.É quando, mesmo lamentando, o sábio caipira apenas murmura: “Já que tá que fique”, ué.

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