CECÍLIO ELIAS NETTO

Internet, vaso de Pandora?

Cecílio Elias Netto
25/07/2014 às 05:00.
Atualizado em 27/04/2022 às 04:29
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

Quando me perguntam o que penso do agora, calo-me. Não sei responder. Pois há a perplexidade de quem vê, num mesmo quadro, misérias e maravilhas.   Gostaria de ser passarinho — voando de lá para cá — aproximando-me do calor e do carinhoso, fugindo às ameaças e à violência. Não me sendo possível voar e escolher, contentei-me — última possibilidade — em ficar à beira da estrada, olhando os que vão alegres e os que retornam cabisbaixos.   Os céus deram-me o privilégio — e a eles rendo graças — de acompanhar, nestes meus 58 anos de jornalismo, mudanças, transformações, revoluções, perdas e conquistas. Vivi — no incessante girar do mundo e da vida — essa epopeia do cotidiano. Que é fantástica. E vivi-a — como ocorre em redações de jornais — conhecendo detalhes, causas e conseqüências. Vi ervas daninhas sendo podadas, dando espaço e lugar a plantas viçosas. Mas, vi, também, a destruição do bom e do belo para a implantação do mau e do horror.    Não consigo explicar. E, daí, a perplexidade. A memória parece morar-me no coração. Lembro-me de quase tudo e, muito disso, em detalhes. Então, ao recordar, o coração ora salta de alegria, ora se confrange de dor. Conquistas humanas são muitas e admiráveis. Mas terríveis as perdas e os danos.   E — pior de tudo, em meu entender — cometemos o absurdo erro de desistir da corrida de bastão. Corríamos e corríamos, cada geração entregando à outra — que vinha em seguida — o bastão da continuidade, a herança para a busca do sonho com o frescor de novas pernas e braços, almas e corpos.   Os que chegavam davam continuidade a tesouros que — como herança — lhes fora entregue pelos que concluíam a sua corrida. Velhos ensinando os jovens; jovens renovando o aprendizado — um moto-contínuo de descobertas e revelações.   Um elo da corrente perdeu-se em algum lugar, em algum momento. Rompeu-se, então, a força vital. E ela se espalhou, fragmentada, difusa, sem mais balizas, sem mais referenciais. Multidões parecem estar órfãs. E outras multidões sentem-se no vazio da ausência de filhos. Não há mais heranças. Tudo se consome num mesmo tempo. E não há o que deixar, não há a quem suceder, não há o que continuar. Vivemos como se, ao mesmo tempo, o mundo tivesse começado agora, devendo terminar amanhã.   Não sei, pois, o que responder quando me perguntam sobre o agora. Estou entre o maravilhado e o perplexo. Na infância já longínqua, andei de carroção de boi em fazenda de meus tios. E vi — assustado e tomado de fascínio — a chegada humana à Lua.   Escrevi a lápis, com caneta tinteiro, com esferográfica, máquina de escrever, cheguei ao computador. Posso carregar, no bolso, uma biblioteca inteira. Antes, mal podia caminhar com dois ou três livros. A Lua dos seresteiros, a Lua de São Jorge morreu. E, de lá, satélites me espiam, sabem tudo de mim.   Estrelas apagaram-se, acuadas por satélites artificiais. Crianças não mais têm verrugas nas mãos, que nasciam quando se apontava os dedos em direção às estrelas.   Sinto ser agônica essa reviravolta sem transição. Mal baixa uma nuvem de poeira, eis que surge outra. E mais outra e mais outra. As conquistas da ciência e da tecnologia parecem um sonho delirante, a mais formidável — até aqui — das realizações humanas. E, no entanto, vão-se tornando pesadelo.   A ciência é neutra, não conhece bem ou mal. O uso dela é que define sua moralidade. A revolução do átomo levou-nos a conquistas indescritíveis para o bem da humanidade. Mas criou a bomba atômica. O mesmo princípio salva milhares de vida e, ao mesmo tempo, mata outros milhares ou milhões.   Eis que estamos diante de um verdadeiro milagre que faz boquiabrir sábios e ignorantes, crentes e descrentes, pobres e ricos. A internet abriu as portas para um mundo ainda mais amplo, para o conhecimento entregue em domicílio, para belezas, para o encontro, para uma nova experiência de fraternidade universal.   Amplia horizontes e pode democratizar o mundo. Mas é — também ou especialmente? — uma imensa lixeira humana. No interior do milagre da inteligência, criam-se monturos de lixo universais.   A internet parece tornar verdadeiro o mitológico vaso de Pandora. Ela, primeira mulher, recebeu dos deuses o dom da graça, da beleza, de todas as qualidades.   Mas Zeus destinou-a à punição dos homens, portadora de todos os males. Ao abrir o vaso, Pandora deixou escapar todas as desgraças. E elas espalharam-se pelo mundo. No fundo do vaso, porém, ficou a esperança. Que se tornou a última consolação humana.   A internet — tornando-se vaso de lixos humanos — não é apenas lixeira. Na essência dela, está a maravilha para a qual foi destinada: a esperança. Basta fazer a opção.

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