CECÍLIO

'Idade de ouro' ou de ferrugem?

28/03/2014 às 05:00.
Atualizado em 27/04/2022 às 00:45

Quem foi o mentiroso que disse ser, a velhice, a “idade de ouro”, “terceira idade”, “melhor idade”? Se ouro houver, está escondidinho em algum lugar difícil de achar. Melhor no quê, caramba? E a idade é a última, não a terceira. Ora, o tempo de vida humano é comparado às estações do ano: Primavera (início, adolescência); Verão (juventude); Outono (maturidade); e Inverno (velhice). Quem chega aos 70 anos está — ora, bolas — na quarta idade, que é o fim, o Inverno da vida. Conversa pra boi dormir... Cheguei dos meus mais de 70 anos. Mas apenas até recentemente, pois, agora, perdeu a graça. Eu me sentia feliz em fila de mercado, de cinema, de bancos, em qualquer fila — com preferência “para idosos, com necessidades especiais e gestantes”. Dava-me um prazer sádico passar, legalmente, à frente dos mais novos, embora alguns parecessem mais acabados do que eu. Sentia-me, na verdade, alguém poderoso! E o estacionamento “para idosos”, que privilégio mais revigorante? Agora, porém, nem mais isso me agrada. Pois, de repente, é como se o mundo fosse habitado apenas por gente idosa. Eles, os velhinhos, estão em toda parte, crescendo em número ou, então, saindo dos túmulos. Filas “para idosos e gestantes” estão mais longas do que as das “pessoas normais”. Na verdade, há uma verdadeira exploração de velhinhos e velhinhas. Muitos usam filas preferenciais para pagar contas de luz, de água, do raio que os parta. Só que são contas de terceiros. Há uma nova profissão: “velhinhos pagadores”. E moças que entram na fila inventando gravidez de um mês, ainda sem barriguinha? E os que levam pais e avós apenas para ficarem na fila do pagamento? Os pobres velhinhos ficam sentados em banquinhos e, quando os filhos ou netos, sei lá, chegam, lá vão eles, capengando, para o início da fila. “Idade de ouro”, aqui, ó! Desmanchei um grupo de amigos — que, a cada 15 dias, se reunia num boteco — por ter começado a entrar em depressão. Os desgraçados somente falavam de receitas e medicamentos. “Você viu, cara? Saiu um ainda melhor que o Viagra!” Ou: “Você já sabe do novo lançamento para colesterol, diabetes, triglicérides?” Ou de asma, de reumatismo, de artrose, de depressão, o diabo a quatro. Só não se falava de caspa — pois eram quase todos carecas — e, obviamente, de piolhos. Era uma tristeza. Ninguém mais falava, como antes, de quem-está-pegando-quem, da mulher que estava traindo o marido, essas coisas doces, saborosas e educativas de se falar e de se ouvir. Desisti. Em compensação, aprendi a — todas as manhãs, ao despertar — render graças a Deus. Pois foi o que um médico recomendou a uma velha amiga, que reclamava de dores: “Minha filha, depois dos 50, dê graças a Deus se você tiver dores. É sinal de ainda estar viva. Sem dor, é porque morreu”. Acordo, dói, suspiro aliviado. Mas entristeço de novo ao pensar: “Menos um dia!” Antes, idiotamente, ao entardecer, meu suspiro era outro: “Ufa, mais um dia”. Saudade. “Melhor idade”? Mas e o medo, a cada dia, do Alzheimer? Vou à cozinha tomar um cafezinho e, chegando, pergunto-me: “O que é mesmo que vim fazer aqui?” Outro dia, perguntaram qual o número de meu telefone. Fiquei paralisado: qual era mesmo? Pedi socorro à minha empregada e ela, assustada, me lembrou. E a chave do carro, onde foi mesmo que deixei? E, hoje, é segunda ou terça feira? De que mês? E o medo de assinar cheques e escrever, em vez de reais, “merréis”? E as malditas senhas de cartões, de e-mails, de bancos, ao fazer pagamento? Sinto-me o mais feliz dos homens quando, ao fazer compras, consigo digitar minha senha corretamente. O coração bate forte no peito, fico ansioso, mas, se acerto, o alívio é imediato: “Alzheimer, ainda não...” Salvo-me pelos dedos, com os quais me sinto na melhor idade, na idade de outro, na terceira idade — aí, sim. Ao dedilhar o teclado, meus dedos começam a pensar por mim. Descubro minha mente, meu raciocínio, meus neurônios terem descido, todos, para a ponta dos dedos. Mas... O coração volta a palpitar, o medo retorna quando não me lembro mais se se escreve xícara ou chícara. E os hífens? Deixo os dedos pensarem e meus editores que se virem! Quando paro de escrever e os dedos se acalmam, outro fantasma me assusta: e se a artrose chegar-me aos dedos? Se acontecer, terei, realmente, Alzheimer abobalhando-me as mãos. Ou um AVC nos dedos, desastroso derrame digital. O mais alegre sinal de vida me está nos dedos. O idiota que inventou ser, a das pessoas com mais de 70 anos, a “idade de ouro”, este, certamente, deve ser jovenzinho romântico. Ou marqueteiro para tirar dinheiro de velhinho. Em vez de ouro, é “idade da ferrugem”.

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