Sessão de Cinema

Ida

 Enfim consegui ver (em condições aceitáveis) Ida, do polonês Pawel Pawlilowski. Eu o tinha assistido na correria da premia&cc...

João Nunes
11/03/2015 às 21:35.
Atualizado em 24/04/2022 às 01:33
Ida (João Nunes)

Ida (João Nunes)

 Enfim consegui ver (em condições aceitáveis) Ida, do polonês Pawel Pawlilowski. Eu o tinha assistido na correria da premiação do Oscar num estado lamentável de sono que me impediu de avaliá-lo como deve ser. Tanto que indiquei o russo Leviatã (Andrey Zvyagintsev) como favorito.  

Corrijo o equívoco, pois independentemente de ser sobre judeus na Segunda Guerra, que pode ser passaporte para uma atenção especial da Academia – como afirmei ao me referir ao Oscar ganho –, Ida não somente é um excelente filme como conquistou merecidamente o prêmio.  

Meu primeiro olhar foi para a fotografia em branco e preto de Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski (indicada ao Oscar). Poderia ser fetiche do diretor, mas não. O tempo no qual se desenrola o drama está impregnado desde sempre em nossas retinas pela ausência de cores. Era um tempo escuro aquele, que só poderia ser retratado em branco e preto. Pensado assim, todos os filmes sobre a Segunda Guerra teriam de ser desprovidos da cor.  

Entretanto, existe outro elemento que justifica a opção dos diretores de fotografia, pois um dos temas do filme é a obscuridade: alguém decide trazer à luz uma história destinada a ficar escondida para sempre. Se quisesse, no belíssimo plano final, o diretor poderia oferecer-lhe um pouco dessa luz (mesmo correndo o risco da redundância) porque, afinal, a verdade foi revelada.  

A tal verdade: a jovem noviça Anna (Agata Trzebuchowska) está prestes a prestar os votos e se tornar freira, mas a madre superiora insiste em que ela visite a única sobrevivente da família, a tia Wanda (Agata Kulesza), e ela descobre a real identidade – outro tema do filme.  

A judia Anna teve os pais e um irmão assassinados durante a guerra. Agora, ela e Wanda, mulher devassa e apoiadora dos comunistas poloneses, farão dolorosa viagem em busca do passado.  

Falando da fotografia de novo, ela nos faz mergulhar nesse passado sinistro como se voltássemos ao tempo no qual a cor não poderia mesmo existir: na melancolia do preto e branco há o espaço devido para que fique expressa a dor vivenciada pelas duas personagens em cada momento da viagem.  

Wanda na trajetória decadente, alcoolizada o tempo todo, saindo com qualquer homem, remoendo o passado, sentindo culpas e saudades da irmã. Anna, perdida porque, agora, tem nova identidade. E o que fazer com ela? Além disto, se vê obrigada a frequentar lugares inconvenientes para quem deve se tornar freira. E pior (ou seria melhor?): descobre desejos que uma freira não deve ter – ou não faria votos de castidade.  

Em princípio, o mundo de Anna desaba não só porque não sabe mais quem ela é (por si só, enorme conflito), mas porque, longe da onipresença de mulheres do convento, conhece a gentileza e o afeto do jovem músico Lis (Dawid Ogrodnik). E ele ainda lhe apresenta John Coltrane – Ida apreciou a música e queria saber quem era o compositor.  

Provavelmente, Mozart também foi uma primeira audição de Anna – desta vez apresentado por Wanda. Não por acaso, sozinha na casa da tia, imita-lhe todos os movimentos: fuma, bebe e ouve a Sinfonia 41 de Mozart.  

Há necessidade absoluta em Ida de experimentar o que poderia se o outro lado dela – espelhada na tia, ou no contato com Lis. E há, ao mesmo tempo, profundo desconforto em como lidar com as duas faces que agora surgem como antípodas e desafiadoras.  

Por isso é tão linda e significativa a cena do espelho em que ela retira o véu, solta os cabelos e revela ao espectador a beleza que possui. O que fazer com essa beleza até então escondida? (Wanda diz: “ela tem cabelos tão lindos e os esconde”). O que fazer com a Anna desconhecida que agora vem à tona?  

Eis o drama que Pawel Pawlilowski dirige com extremo afeto (até porque há traços autobiográficos no filme) e para o qual cria atmosfera que remete a uma tragédia e, no entanto, não existe espalhafato nem exageros. Tudo é contido, o drama se explicando por ele mesmo sem necessidade de artifícios de nenhuma natureza.  

Tanto que a música entra sempre como parte da narrativa: nos bares, na casa de Wanda e em situações nas quais se integram à história e não como acessório para realçar emoções. No mais, ouvimos o silêncio dos cotidianos dos personagens.  

O único momento em que o diretor se utiliza do artifício é justamente no citado plano-sequência final. Com a câmera pregada ao rosto Ida caminha pela estrada na direção do destino que ela se impôs (ou que lhe foi imposto) ao som de um belíssimo concerto de Bach.  

E o filme abandona o distanciamento e nos carrega para o terreno da emoção. Que seja. Gosto de ser provocado na emoção, até porque estamos no plano final. E o concerto Ich Ruf Zu Dir Herr Jesu Christ, de Bach, com todo seu contexto religioso (mesmo protestante), faz todo sentido no fecho da história de uma religiosa. História triste de um grande filme.

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