RODRIGO DE MORAES

Híbridos

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
13/05/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 13:54

Dia desses, no trânsito, vi um carro, desses utilitários, que acredito ser de uma lanchonete especializada em cachorros-quentes. Na carroceria do veículo estava estampado — além do logotipo que combinava a palavra “dog” com algum outro termo — uma figura absolutamente grotesca, fusão de ser humano com cachorro. Obra de algum software desses na linha do Photoshop, que permite manipular imagens ao ponto de não se poder mais discernir se elas são reais ou não. Claro que o “cãohumano” — ou “humanocão” — não se apresentava como alguém, ou algo, que se pretendesse crível, mas era de um realismo francamente perturbador. E de um mau gosto atroz. Não lembro onde, mas uma vez li que o terror inspirado pelos monstros reside não no que eles têm de bestial, mas no que têm de humano. O que angustia é o resíduo daquilo que um dia foi um homem, como um brilho tênue no fundo dos olhos, ou um gemido gutural que resulta de uma tentativa de articular uma palavra: “Meu nome é....”. (“Não, não há mais um nome”, sussura uma voz. “Você agora se chama ‘coisa’”). Eu era criança, e passaram-se dias, semanas, e eu não conseguia esquecer uma cena de 'A Mosca da Cabeça Branca', clássico do terror “B” no qual um cientista que estuda teletransporte funde-se por acidente com uma mosca. Ou melhor, troca algumas partes do corpo com o inseto. Na sequência final, a mosca do título acaba presa em uma teia de aranha, e a metade do cientista que foi parar no corpo do inseto grita por ajuda, com um fio de voz que mais parece um guincho de violino. Confrontado com aquele horror, um dos personagens resolve acabar com tudo com uma pedra, que esmaga presa e predador. Acho que eu faria o mesmo. David Cronenberg refilmou a história, e deu a ela doses extras de horror e escatologia. O pressuposto é o mesmo: cientista Seth Brundle (sempre achei que o primeiro nome vem de “insect”, inseto) funde-se sem saber com uma mosca durante uma experiência. Mas não há, inicialmente, mudanças visíveis, porque a fusão acontece em nível genético. Mais adiante, porém, o homem-mosca vem mostrar a que veio: ganha um apetite e energia incomuns, pelos anormais começam a crescer em seu corpo, e ele sobe, literalmente, pelas paredes. A transformação final — e essa parte é francamente repugnante — se anuncia como uma espécie de câncer, com perda de dentes e membros. Em sua forma derradeira, o híbrido de mosca e cientista ainda conserva um lampejo de humanidade, o suficiente para implorar que o matem, que deem um fim ao seu sofrimento de criatura sem Deus. Filmes como 'Alien - O Oitavo Passageiro' e 'O Predador' também cumpriram o seu papel de alimentar o imaginário coletivo com monstros — nesse caso, extraterrestres ferozes. Além da violência que os move, o terror que inspiram talvez venha de seus formatos antropomórficos (o terror está naquilo que é humano, lembram?). Ambos são bípedes (ainda que o primeiro assuma postura quadrúpede para se locomover por tubulações e se esconder em cantos escuros) e possuem mãos com polegares opositores. Acima de tudo, são inteligentes, de uma inteligência quase diabólica, na hora de localizar, encurralar e liquidar suas presas. E essa natureza, de não agir apenas por mero instinto, acaba por coroar a sua semelhança com o homem e torná-los plenamente monstruosos.

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