Defensor de uma cozinha honesta e da preservação dos sabores e tradições, Salvatore Loi, traz à tona lembranças da vida na Itália e destaca a evolução da cozinha brasileira
Sem falsa modéstia, o sardenho Salvatore Loi dimensiona a própria envergadura. Diz-se orgulhoso de ter acolhido um punhado de cozinheiros tupiniquins da nova geração sob suas asas, ao longo dos 14 anos em que vive no Brasil – 13 dentro das cozinhas do Grupo Fasano; um no Grupo Egeu, dividindo-se entre o restaurante Girarrosto e o recém-inaugurado bar Mozza. “A cozinha brasileira evoluiu muito, sobretudo em relação à produção do mercado interno, e creio que a vinda de chefs estrangeiros para cá, grupo no qual me incluo, fez a diferença nesse processo. Houve um sóbrio intercâmbio, os profissionais brasileiros passaram a viajar mais, a se interessar por renovar as referências. Posso dizer que, durante todo o meu percurso no País, contribuí com a pesquisa e a investigação de ingredientes”, introduz.
Loi sempre esteve certo de que a memória do paladar é mais fiel e intensa – daí haver feito do reacender de lembranças sua assinatura, em cada prato. É fato que, no começo, precisou se adaptar às saudades e às ausências. “Tinha um arroz italiano para risoto, alguns vinhos e um bom grana padano para executar receitas clássicas aqui.” Saída natural? Voltar os olhos para o campo, reinventar-se.
Para ilustrar o que isso significa, ele se recorda de um senhor de Bento Gonçalves (RS) que o procurou, anos atrás, para lhe dizer da pequena criação de ovelhas e do queijo pecorino que desenvolvera. “Ele me contou que tinha uns 80 animais e pediu para eu testar os produtos feitos com o leite. Eram muito bons. Agora, ele tem uma marca sólida, a Casa da Ovelha. Acho que esse foi um dos primeiros dos tantos trabalhos que desenvolvi. Queria estimular o pequeno produtor e despertar o mercado para essas propostas diferentes e sérias. Hoje vejo bons vinhos, azeites e outras coisas surgindo. Se os chefs mais jovens tiverem consciência disso e boa base técnica, vão longe”, avalia.
Um dos nomes que Loi destaca nesse cenário é o de Rodrigo Queiroz, chef do paulistano Tre Bicchieri e que fora seu sous chef no Fasano. Para ele, o discípulo soube explorar a expertise adquirida na França, onde estudou, e em Nova York, Verona e Florença, onde trabalhou, para recriar a cozinha toscana de uma maneira adequada ao contexto gastronômico paulistano – e brasileiro, por que não dizer? “A maioria dos comensais, sobretudo os da nova classe média, exige qualidade, cuidado extremo no preparo e no serviço, mas não está disposta a gastar tanto. A economia mudou, há que se pensar na readequação dos tíquetes médios e na maior concorrência. Os menus dos novos restaurantes tendem a ser igualmente bem executados, mas mais simples e acessíveis”, analisa.
Reconhecimento
Nas últimas entrelinhas, Loi pincelou os motivos pelos quais deixou o Grupo Fasano – os custos elevados de operação estariam minando sua criatividade. Sem estender-se (e sem qualquer traço de mal-entendido ou ressentimento), ele perscruta, em seguida: “Vivi 13 anos de sucesso. Sinto orgulho dos prêmios, do reconhecimento, de os restaurantes da marca sempre terem sido referências em alta gastronomia. O mais legal é que as pessoas sabem, exatamente, qual é o meu estilo, minha filosofia. Gosto da simplicidade, de preservar o sabor, a textura e os valores nutricionais dos ingredientes. Continuo fazendo uma cozinha honesta com preços honestos”, pontua o chef executivo do Girarrosto.
Inaugurada em 2012, no endereço do antigo Pandoro (mítico bar que funcionou por quase seis décadas), a casa é uma empreitada do restaurateur Paulo Kress com o chef Paulo Barros. Loi está à frente dos fogões desde julho passado e resgatou o hábito de circular sorridente por entre as mesas, perguntando o que os comensais acharam de seus pratos. Em novembro, comemorou mais um título, o de melhor restaurante entre os novos italianos da América do Sul, concedido pela revista britânica Restaurant. “Claro que fiquei feliz, mas posso dizer que não mudei nada. Emprego basicamente os mesmos produtos, boa parte deles importada da Itália, caso de carnes e massas, e sigo utilizando o que há de top entre os itens nacionais”.
O menu exalta a culinária da Toscana e resgata técnicas de cozimento rústico como a grelha de carvão e o girarrosto, assador giratório a lenha que assa carnes lentamente e dá nome ao restaurante.
Carta música
Loi é o sétimo rebento de uma família atrelada ao campo, que sobrevivia do que brotava da terra e da produção de carne, leite e ovos numa cidade de 12 mil habitantes, na Sardenha. Caçula, aprendeu a cozinhar com a mãe, típica nonna italiana, e a cultuar a feitura do pão caseiro, cheio de poesia. “Uma vez por mês, todos nós fazíamos um pão muito particular, chamado carta música, que ficava desidratado e nos abastecia até o mês seguinte. Não me esqueço dele.”
O ritual exigia que bambinos e adultos acordassem no início da madrugada para trabalhar a massa: um pedaço era entregue a cada participante. “Abríamos um quilo cada um, minha mãe juntava tudo e redistribuía mais um pedaço, processo que se repetia umas quatro vezes até a hora de virar um disco de pão e descansar antes de ir para o forno. Assados, eles eram cortados ao meio, resfriados e voltavam ao forno para retirar a umidade.” No final da noite, aquele pão, parecido com papel, fazia “croc-croc”, como uma música.
Mestre Loi
O chef formou-se em hotelaria e, aos 21 anos, mudou-se para Milão. Trabalhou em grandes hotéis e restaurantes europeus, entre eles Hotel Palace de Milano (Milão), Hotel Meurice (Paris) e Hotel Vila D’Este (Como). A fase brasuca começou em 1999, quando conheceu o restaurateur Rogério Fasano e passou a capitanear as casas do Fasano. Ano passado, foi convidado pelo Grupo Egeu para unir-se à sociedade do Girarrosto. E está satisfeito. “Posso fazer algo mais leve, mais bonito, mais saudável, mas nunca vou fazer uma desconstrução, me render a modismos. E nunca, nunca mesmo, abrirei mão da cozinha tradicional italiana”, avisa.
Ao rever o próprio percurso, no entanto, sente falta de uma coisa: dar aulas. “Vim ao Brasil para executar a autêntica cozinha italiana e posso dizer que gosto demais de dividir conhecimento. Fiz isso ao insistir que meus cozinheiros respeitassem os produtos, ao lembrar que manter o padrão de uma receita é tão difícil quanto criá-la.” Ladear-se a chefs como o francês Laurent Suaudeau, por exemplo, primeiro a se aproximar dele no Brasil, é uma possibilidade. “Outra é participar de algum evento em Campinas, que não conheço. Só estou esperando o convite.”