Não surpreende a nova encíclica do Papa ser recebida com olhares reticentes por parte de alguns cristãos, sejam eles fiéis, padres ou mesmo teólogos. O documento tem sido colocado sob a lupa avaliativa desses “especialistas” – com o avanço das mídias sociais, hoje todos se acham no direito de avaliar tudo, encontramos peritos em tudo –, para saber se sua teologia não inflige a Doutrina Católica ou mesmo se sua encíclica apresenta categorias ou ligações comunistas. Colocar o Papa de antemão na cadeira dos réus demonstra total desconhecimento do que tem sido indicado por ele. Ao não tocar nos temas desenvolvidos pelo Santo Padre, como: a amizade social, questões políticas e econômicas ali desenvolvidas, se comprova o quanto nossos contemporâneos são marcados pelo egocentrismo e o quanto não desejam uma fraternidade universal. O que é, segundo o Papa, uma enfermidade. Nesse sentido, Francisco se mostra, além de um Papa à frente de nossa época, um grande estadista, pois, a fraternidade universal é importante para construirmos pontes de diálogo e renovarmos a velha política ainda entranhada em nossa realidade. No fundo, Francisco está a seguir de perto um tal Jesus, e, consequentemente, vai acabar por ser “crucificado” por fariseus e doutores da Lei de nosso tempo por ser fiel ao Evangelho. Ao desqualificar as propostas do Santo Padre os cristãos acabam por ser próximos a esses personagens que a todo instante tramam armadilhas contra Jesus para saber até que ponto a Norma não é por ele infligida. Ao questionar Francisco esses cristãos legitimam um discurso populista, superficial e rasteiro contra o Papa que tenta resgatar a centralidade do Evangelho na vida da Igreja e em sociedade. Para dar sustentação à Encíclica Fratelli Tutti o Papa Francisco se vale, no capítulo II, da Parábola do “Bom Samaritano” (Lc 10,25-37), tecida para responder à questão do doutor da Lei que supostamente queria saber: “Quem é meu próximo?” O mesmo questionamento é feito agora por muitos cristãos ao Papa: “Quem são todos esses irmãos?” Jesus definiu bem o que entendia pela palavra ‘próximo’: “o que praticou a misericórdia com ele.” (Lc 10,37). O Bom Samaritano sente misericórdia por aquele que estava semimorto à beira do caminho. Não busca saber quem é o caído, mas olha em primeiro lugar sua necessidade. Em lugar de ver e passar ao largo, como fizeram os religiosos da passagem, acontece o desenvolvimento da parábola em duas séries de sete procedimentos realizados pelo bom samaritano: (1) moveu-se de compaixão; (2) aproximou-se; (3) cuidou das feridas; (4) derramou óleo e vinho; (5) colocou em seu próprio animal; (6) conduziu à hospedaria; (7) dispensou-lhe cuidados. E continua na segunda parte a descrever outro conjunto de sete ações desenvolvidas pelo samaritano: (1) tirou duas moedas; (2) deu-as ao dono; (3) dizendo; (4) “cuida dele; (5) o que gastares a mais; (6) em meu regressar; (7) te pagarei”. Lucas conhece e sabe explorar o valor simbólico do número sete, símbolo da totalidade e da plenitude. Para Jesus amar o próximo é ser misericordioso, seja este quem for. Se fazer próximo, não passar ao outro lado com indiferença, como bem lembra o Papa Francisco: “não nos deixemos enredar pela globalização da indiferença, aprendamos de novo a chorar com os que sofrem e a condoermo-nos com os sem esperança”. Jesus, e de um modo atualizado, Francisco na Encíclica Fratelli Tutti, rompe com os muros étnicos, com as fronteiras humanas e barreiras geográficas e manda-nos amar todas as pessoas, até os inimigos! Os apontamentos feitos pelo Papa através de sua encíclica vêm nesse sentido. É crescente o número de famílias desempregadas; o número de pessoas abaixo da linha da pobreza e com fome volta a crescer. Os pobres são tidos como insignificantes para a sociedade de mercado, não têm palavra e por vezes são considerados com indiferença e desprezo; a ideologia dos meios de comunicação social pretende ocultar essa pobreza ou convertê-la numa normalidade. Assim, a Encíclica Fratelli Tutti faz voltar nosso olhar para a promoção dos direitos humanos, da fraternidade universal, superando discriminações e mecanismos de manipulação e exploração de nossos semelhantes ainda existentes. O modo samaritano de amar nos ensina não apenas amar Deus NO próximo, mas amar o próximo COMO Deus. Segundo Francisco, uma Igreja que “se parece” com Jesus deverá ser uma “Igreja samaritana”, que reage com misericórdia diante do sofrimento humano. Que não discrimine ninguém, que tenha um amor entranhado, que não dê voltas diante dos que sofrem, mas que ajude os que padecem de feridas, sejam elas: físicas, morais ou espirituais. Padre Victor Silva Almeida Filho é da Arquidiocese de Campinas.