CECÍLIO ELIAS NETTO

Fim do mundo e a rosa

Cecílio Elias Netto
13/03/2015 às 05:00.
Atualizado em 24/04/2022 às 01:42
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

Estava animadíssimo com os meus projetos para depois do fim do mundo que se aproxima. Algumas decisões eu já tomara: final da classe política; abertura dos presídios para que, aqui fora, os bandidos se matassem a si mesmos; castração dos que tivessem filhos sem diploma de competência e responsabilidade para educá-los; proporcionar, às famílias decentes, as mesma regalias dadas a canalhas, como teto, cama, comida, apoio financeiro e encontros íntimos.   Na verdade, eu já alinhavara algumas outras providências para depois do fim do mundo. Algumas delas: castração imediata de estupradores e pedófilos; adoção da Lei de Talião para ladrões de todos os níveis, dentro da filosofia “olho por olho, dente por dente”. Seria divertidíssimo ver esse pessoal, por exemplo, do Lava Jato sem os dedinhos das mãos ou sem elas, manetas.   Lá me ia, eu, pois, com entusiasmo para a reformulação de tudo logo após o fim do mundo. Mas, de repente, eu vi a rosa amarela no jardim. E tremi. E tentarei explicar ao meu jovem e eventual leitor do que se trata. Peço que se dirija ao parágrafo seguinte.   Deus, como tenho revelado, costuma visitar-me de quando em quando. E sempre aparece com os pés machucados de tanto caminhar. Suspira, limpa-se da poeira, senta-se, pede um copo d´água. Já tentei oferecer-lhe vinho, uísque, cerveja, Ele nunca aceita. Conversamos e Deus me adverte, aconselha e vai embora. E avisa que voltará assim que a rosa amarela aparecer em meu jardim.   Distraído, eu não a percebera. E, ao vê-la, tremi, o coração atropelado. Era sinal de Deus estar chegando! Como Ele reagiria a meus planos? Então, Ele surgiu. Estava mais compassivo do que nunca. E mais cansado, uma exaustão que lhe empalidecia o rosto. Os pés, como sempre, machucados, sujos de poeira. Entrou, acarinhou-me os cabelos e fiquei ainda mais alarmado, pois Ele nunca, antes, fizera isso.   Mas sorria, um sorriso que eu não soube definir se de amor, de pena, de ironia. Sentou-se, suspirou, olhou os meus quadros na parede. Suspirou novamente, quase desanimado. E começou a falar:   “O que você está fazendo, meu filho? Que loucura é essa de querer refazer o mundo? Não dá certo, menino, não dá certo. Você já deveria ter entendido que foi uma experiência minha num momento de êxtase divino. O céu estava muito solitário, só nós três — Eu, o Filho e o Espírito Santo — e os anjinhos.   Era calmaria demais, a monotonia de ficar ouvindo corais de anjos, orquestras de anjos, sons de violinos, de harpas, de cítaras. Dia e noite, era a mesma coisa. Claro, os anjos são bonitinhos, a paz é absoluta. Mas tudo, em exagero, cansa, enjoa.”Suspirou novamente. Continuou:   “Diante de tanta monotonia, resolvemos criar o Universo. Provocamos uma explosão de estrelas que iluminou a escuridão. Era vida, vida concreta o que tínhamos criado, vida palpável. Tudo foi tão lindo que nos entusiasmamos e quisemos mais. E inventamos a Terra como um jardim impecável, maravilhoso, com rios, cascatas, doçuras, belezas que fomos esculpindo e pintando com o que tínhamos de mais sublime em relação à arte. Ficamos ainda mais extasiados. E pensamos além, em uma criatura também concreta que pudesse usufruir daquelas maravilhas. Foi, então, que criamos o...”   Meneou a cabeça, como que recriminando-se:   “...inventamos o Homem. E, no princípio, foi bom. Adão, sozinho, deliciava-se com tudo aquilo. Mas quis mais e pediu uma companheira. Eu sabia da encrenca em que ele se meteria. Mas atendi-lhe o pedido e Eva surgiu. O resto, você já sabe. A confusão milenar, a descendência atrapalhada, a desordem, os estragos, os ódios, as guerras, as mortes, igrejas que não entenderam nada ou apenas se aproveitam de Mim. E você quer começar tudo outra vez?”   Tentei explicar que não era por vaidade, mas por amor à vida, pelo sonho de um mundo belo e de paz. Para meu espanto, Deus caiu na gargalhada:   “Bobo, bobalhão... Você não aprende mesmo. O homem é um erro de cálculo meu, entusiasmo de momento. Eu, o Filho e o Espírito quisemos fazer o homem à imagem de nós. E cometemos a tolice de lhe dar inteligência, livre arbítrio. Vocês pensaram poder fazer o que bem entendessem, como se fossem maiores do que Nós, a Trindade. Se você, meu tolinho, quiser recomeçar, tudo acontecerá de novo: vizinho enganará vizinho, roubará o boi, a terra, a mulher do próximo. Tudo, tudo de novo. Para quê?”   Levantou-se, desconsolado:   “Nem eu, Deus, consegui dar um jeito no homem, meu tolo rapaz. Quer parar, portanto, com essa idiotice? Seja inteligente e viva a velhice com sua família, com seus livros, no seu mundinho pessoal. O mundão não tem jeito. Deixe que acabe.”   Então, desisti.

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