Filmes do bem (João Nunes)
Qualquer cinematografia para ser forte e consistente precisa de produções de todos os gêneros. Portanto, a crítica não é ao gênero, mas o modo como foram feitos “os filmes do bem” Trash – A Esperança vem do Lixo, do britânico Stephen Daldry, diretor, entre outros, dos ótimos Billy Elliot (2000) e As Horas (2002); e Na Quebrada, do brasileiro Fernando Grostein Andrade.
Trash, baseado no livro homônimo do também britânico Andy Mulligan, com roteiro de Richard Curtis (igualmente vindo da terra da rainha), poderia se passar no Brasil, Índia ou Filipinas, mas escolheram o Rio de Janeiro como cenário. Começam aqui os problemas.
Afinal, temos uma história inverossímil pela própria natureza. Preso político no Brasil? Há na Venezuela, em Cuba, no Irã e na Coréia do Norte. No Brasil soa completamente estranho – daí que se perde toda credibilidade da história, ainda que ela seja ficcional.
Mas o roteiro fala em corrupção e tange as inócuas passeatas de junho de 2013 – aí, sim, estamos num terreno farto, pois se há algo que não falta no Brasil é corrupção. No ano passado políticos foram condenados e presos por causa do Mensalão e, agora, chovem denúncias sobre a Petrobrás. É disso que o filme fala? Não. Fala de um sujeito (Nelson Xavier) que está preso sabe-se lá o motivo.
E uma carteira vai parar no lixão e um garoto a encontra e passa a ser alvo da polícia. Tem um político envolvido na trama, 10 milhões de reais em jogo, um padre bonzinho (parece filme sobre Nicarágua e El Salvador dos anos 1970), policiais odiáveis e miséria das favelas.
Então ficamos assim: o padre, os meninos da favela, o preso político e um justiceiro e sua filha são bons; os políticos e a polícia são maus. Quer roteiro mais clichê do que este? Quer melhor definição de maniqueísmo? Tudo plano, raso, sem nuances, nada.
Mas os problemas estão longe de acabar. Os diálogos são completamente falsos. O protagonista fala em “nossa vitória”, em “revolução”, como se esses conceitos coubessem na visão de mundo de um garoto de uns dez anos morador de favela e catador de lixo; isso está na cabeça do escritor e do roteirista.
E há o surgimento da filha do justiceiro que aparece no meio da noite num cemitério, que é um dos mais constrangedores momentos da história. Se alguém pensa em realismo (pois o roteiro parte desse princípio desde o início), não dá para aceitar que uma criança esteja sozinha num cemitério à noite. Só se fosse filme de terror.
E se os três garotos, especialmente Rickson Tevez, estão bem, Wagner Moura e Selton Mello fazem neste filme seus piores trabalhos como atores. Moura está fora do tom e jamais convence, enquanto Selton interpreta um policial totalmente caricato – e descobrir logo de cara quem é o garoto que encontrou a carteira é de um primarismo dramatúrgico imperdoável do roteirista.
Para todos os efeitos, Trash – A Esperança vem do Lixo se pretende ser um filme do bem – a solução encontrada para o dinheiro é de doer, assim como o menino enfrentar a tortura e fazer o papel de herói que nem ele sabe bem para quê serve (ele diz que ajuda o preso político porque acha certo; de novo, quem acha é o escritor e do roteirista).
Ao final, fiquei pensando: será que Andy Mulligan, Richard Curtis e Stephen Daldry acreditaram, de fato, no que realizaram? Para usar um clichê, num filme repleto deles, ou é apenas um filme para britânicos assistirem?
Na Quebrada
Dá até para entender as boas intenções do filme de Fernando Grostein Andrade – que vem a ser irmão de Luciano Huck, que é o produtor. Sei que o assunto está repleto de complexidade. Se não faz nada, dizem que é rico egoísta; se faz, soa paternalista.
Mas não dá para fugir da segunda opção. E não dá para fingir que não estamos diante de um filme pouco preocupado com cinema e mais interessado em ser do bem, edificante, tentando resolver os problemas sociais do país e passar uma “mensagem” – não há nada pior que filme de mensagem.
E, mesmo baseado em histórias reais, soa também inverossímil porque os diálogos são ruins, assim como as soluções das encenações. E a premissa de achar que na ONG está a salvação, assim como no cinema (arte em geral) só complica ainda mais.
A saída está no trabalho. Simples assim. Fazer arte não dignifica ninguém só por ser arte, ela é só uma das muitas opções – e uma das mais difíceis; quem consegue viver dela no Brasil? Quem vive de cinema no Brasil? Uns poucos.