ANDRÉ FERNANDES

Fascínio, imitação e desmedida

21/08/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 04:47

“A América tem um certo fascínio doentio por Bonnie e Clyde”, diz um protagonistas do ótimo filme “Bling Ring, a gangue de Hollywood”, baseado em fatos reais. Bonnie Parker e Clyde Barrow foram um casal de assaltantes de bancos que aterrorizaram os Estados Unidos durante o período da Grande Depressão. Entre um assalto aqui e outro ali, assassinavam quem estivesse no encalço, como quem dá um bico numa pedra que ocupa o meio do caminho.De fato, os jovens do filme deixaram-se levar por aquele fascínio doentio de desmedida material, sem necessidade, porque já tinham um padrão de vida que estava bem longe de qualquer noção de pobreza material, a julgar pela vida que levavam no bairro mais chique de Los Angeles.A desmedida material da gangue era, no fundo, algo além da imitação dos modos de se vestir das celebridades que endeusavam: a ideia era ser parte daquele estilo de vida usando as roupas, os sapatos, as jóias, os adereços e os perfumes dos próprios donos. Detalhe: sem o consentimento deles. Ou, como diz a outra protagonista da película, sabendo que Paris Hilton daria uma festa de arromba fora de sua casa naquela noite: “Vamos dar um pulo na Paris. Eu quero roubar!”.Assistir um burguês roubando outro burguês faria um marxista old timer delirar. Mas não é o caso. Na época moderna, a burguesia, de fato, fez do poder seu valor supremo, ao dizer que o homem é medido por seus recursos. Aliás, esse foi uma parte do legado de Hobbes, não o sábio tigre de pelúcia do Calvin (que, por aqui, foi pessimamente traduzido como Haroldo), mas o original, o do Estado-Leviatã. Ele formulou com enorme força e coerência o ideal do homem burguês e a identificação do homem com seu poder e seus meios.Poder significa força. Identificar o homem com o poder significa apostar em si mesmo como o senhor de tudo aquilo que o rodeia. Hoje, o poder mais direto e evidente é o poder do dinheiro, pois o uso que se faz dele é muito mais amplo e sofisticado que no passado. No caso de dúvida, perguntem para o Eike Batista que, mesmo tendo “empobrecido”, continua bem rico para o padrão tupiniquim. E, com raras exceções, como o tio Patinhas, ao lado do uso de muito dinheiro, aparece o luxo, como sinal de ostentação de poder.Para aqueles jovens ambiciosos do filme, não era suficiente o luxo que o dinheiro dos pais já lhes proporcionava e que permitia comprar a mesma bolsa Chanel ou mesmos óculos Prada da Paris Hilton. Era preciso ostentar a bolsa Chanel e os óculos Prada subtraídos diretamente do closet da dona dos bens, o que os tornaria mais fortes e distintos no meio da juventude endinheirada em que já viviam. Em suma, para muitos, o luxo do luxo. Para outros, o lixo do lixo.Se uma excessiva preocupação pelo luxo materializa a vida humana até torná-la miserável, fico a imaginar o grau de miséria a que alguém pode chegar quando esse luxo é ostentado a partir de uma relação mimética em que o proprietário da coisa furtada é mais importante que a coisa furtada. Porque alguém que usa as roupas subtraídas da Paris Hilton, não quer imitar a Paris Hilton: que ser a própria Paris Hilton, com se isso fosse possível.Todos queremos ser o que os nossos modelos são ou pretendem ser. E há modelos e modelos. A sabedoria está em escolher um modelo que nos conduza à uma certa excelência moral e não material. Quando fazemos a segunda escolha, à semelhança dos membros da gangue, ficamos expostos à tentação de poder quase incontrolável que o dinheiro proporciona, acompanhada por seu rolo compressor de interesses que atropela qualquer limite ético-social.Numa sociedade em que há dinheiro e celebridades a granel, corremos o risco de ficarmos enredados nesse clima burguês de poder hobesiano, o qual cria as condições para que um fascínio saudável pelo virtuoso seja, sem pestanejar, substituído por um fascínio doentio pela desmedida.Dessa forma, a afirmação que abre o artigo faz sentido. Seja um fascínio doentio pela desmedida de Bonnie e Clyde ou dos protagonistas do filme. Ou mesmo daqueles que viessem a assaltar as casas dos jovens assaltantes, em busca da bolsa Chanel e dos óculos Prada da Paris Hilton. Com respeito à divergência, é o que penso.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por