MAZZOLA

Fantasmas na imagem

Gustavo Mazzola
27/05/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 12:28

Camisa para fora da calça, sandálias de dedo, cabelo grande, desgrenhado e caindo sobre os ombros, ele mostrava-se mesmo como um sujeito de aspecto pouco confiável. Entrou de olhar altivo, passadas firmes na agência de carros, quase arrastando pela mão esquerda uma sacola de pano meio... meio encardida. Dirigiu-se ao primeiro vendedor que lhe apareceu pela frente, e foi logo fazendo o seu pedido: — Quero ver os carros aí, para comprar. O que você tem de bom?O homem da loja, de ar preocupado, já assessorado por colegas, foi brusco: — Não tem nada aqui para o senhor. Por favor, saia logo por aquela porta. Estamos aqui muito ocupados.Ele olhou para o vendedor, mostrando no rosto um sorriso sarcástico, deu meia volta e se foi. Atravessou a rua, e dirigiu-se direto à outra loja de igual comércio, bem de frente àquela donde havia sido “banido”. Sem maiores rodeios, comprou uma frota de veículos novos, pagando “cash” com todo o dinheiro que trazia na tal sacola encardida.Explicação: o nosso personagem representava uma organização comunitária ligada a uma organização religiosa, locadora de transporte automotivo, que vivia — muito bem — com a colaboração de seus fiéis. Bem, não é preciso dizer o que aconteceu com os funcionários da primeira loja procurada pelo homem de “mau aspecto”: todos demitidos.É isso: às vezes, a imagem pessoal ruim causada pela adoção de um modelo fora dos conformes pode provocar transtornos, resultando prejuízos desastrosos. Parafraseando, é como no tempo da TV em preto e branco, quando sombras, às vezes, comprometiam todo o seu glamour, mostrando-se como o que chamávamos de “fantasmas” no vídeo. Mas uma má imagem pessoal — por desleixo ou mera opção de vida — pode acabar em incríveis histórias, algumas de sabor até folclórico como essa aí em cima.Vamos a outra: um professor do meu ginásio, em bons tempos de juventude, era tido como um modelo de elegância, ares de galã de novela, paparicado pelas alunas mais afoitas. Com o passar dos anos, já à beira da velhice, descuidava-se da aparência. Eu o via, agora, frequentando nosso círculo cultural de uma forma que impressionava: roupas puídas, barba por fazer, um desleixo total.Um dia, como sempre acontece com qualquer filho de Deus, morreu. Só então fomos descobrir que o velho professor, que vivia caindo pelas tabelas, era proprietário de dezenas de imóveis, aos quais não se dedicava nem um dedo de sua vida pacata. Para nossa surpresa, era um milionário.Tem a história, também sobre “imagem ruim”, um tanto fantástica, mas interessante: é sobre aquela misteriosa figura que passava, todos os dias, à frente da nossa loja aqui perto de casa: maltrapilho, camisa rasgada, descalço, apresentação lastimável. Vinha sempre puxando um carrinho de rodas de borracha e guarnições de madeira. Dentro, tudo o que se possa imaginar: tábuas de vários tamanhos, latas, latões, caixas de papelão, até utensílios domésticos sem valor. Sucatas? “Não... reciclados”, ele frisava.Numa de suas passagens, acenei para ele, amistosamente, convidando-o para um café. Foi quando me surpreendi: agradeceu-me num palavreado empolado, cerimonioso, que não coincidia com sua estampa miserável. Nos dias seguintes, habituou-se a parar um pouco no meu pedaço e trocar algumas palavrinhas. Era de uma erudição espantosa, conhecia autores europeus, discutia política e economia internacional como um doutor.Um dia, decidi segui-lo, sem que me percebesse. Ele caminhou com sua carrocinha até um jardim próximo, estacionou-a à beira do gramado, sentou-se num banco de pedra, pôs-se à vontade. Então, com desenvoltura, tirou do bolso da calça, esfarrapada, um celular de última geração, discou e começou a falar — em inglês — com um interlocutor do outro lado da linha. Entendi que pedia para que chamasse alguém. Então, ouvi bem claro suas palavras, agora em português corretíssimo.— Minha filha, como está a nossa Londres. Olhe, estou terminando a pesquisa. Amanhã, dou um jeito no visual, barba e cabelo e... começo a digitar a tese. Entrego tudo na Universidade e parto pra aí. Aguarde-me.O nosso catador de “reciclados” era um intelectual embora mostrasse “fantasmas” na imagem. Pode crer, esse incrível personagem existiu mesmo, é verdadeiro, ainda, hoje, o encontro pelo bairro. Mas, não se esqueça de um detalhe: quem conta um conto, sempre aumento um ponto.

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