CECÍLIO ELIAS NETTO

Existir, viver e ser

Joaquim Motta
15/08/2013 às 22:52.
Atualizado em 25/04/2022 às 05:15
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

Entrei na cozinha para bebericar um cafezinho. E, então, ouvi a cozinheira — mulher generosa, alegre, inteligente, solidária — resmungar em voz alta, como se pouco lhe importasse se eu a ouvia. Falava de si para si, ou para o mundo: “Eu não existo. Vivo para todos eles: filhos, netos, marido, família. E não sou ninguém”. Condoí-me dela, mulher simples mas inteligente, caridosa, de religiosidade sólida. Ouço-a, logo pela manhã, cantando ou cantarolando músicas sacras. Ou, então, invocando Nossa Senhora. Ela conversa com os saguizinhos, com as plantas do jardim. Quisera eu ter alma semelhante a dela, límpida, pura, doce. E, no entanto, lamuriava-se — sem, talvez, ter consciência — exatamente da abundância de amor que tem para dar aos outros. Vivendo para todos — marido, filhos, netos, família, também para mim e para os meus — ela existe de maneira singular, mais do que as multidões. E, dizendo “não ser ninguém”, ela, verdadeiramente, é, mesmo ignorando ser. Nada comentei, sentindo que, se o fizesse, estaria invadindo um momento íntimo, confessional, sagrado daquela sofrida mas amorável mulher. No entanto, ficaram-me, as palavras dela, pulsando no cérebro como espinhos instigantes. E, aos poucos, dei-me conta de que ela fizera um desabafo de perplexidade e aturdimento que parece ser cada vez mais comum entre as pessoas em nosso tempo. Multidões e multidões não estão, hoje, bradando ou perguntando-se: para que existimos, por quê; estamos mesmo vivendo, como vivemos; somos quem, somos o quê? Aquela mulher — dei-me conta, enfim — fazia filosofia profunda em seu desabafo dolorido. Ela se enredara no essencial que nos tem escapado nesta era suicida de imediatismos e leviandades humanos, de irresponsabilidades para com a própria dignidade pessoal. Trocamos o pouco que tínhamos pelo nada que nos esvazia espiritual e moralmente. Pior ainda: perdemos a capacidade de refletir, de pensar e, portanto, de escolher e nos conhecermos pelo menos um mínimo honroso. Poucos pensam por e para nós. E, como rebanho, vamos seguindo-os. Na verdade, optamos por um estilo de vida que se assemelha ao labirinto onde estava encerrado o Minotauro da lenda. Há tantas veredas, tantos caminhos e descaminhos, que nos perdemos sem saber como chegar a algum objetivo, ao centro. Na lenda, Teseu estava enredado e somente conseguiu sair do labirinto e não ser devorado pelo Minotauro porque tinha o fio condutor de Ariadne. No labirinto de nossos tempos, estamos sem fios condutores e sem nenhuma Ariadne. Por isso, ou continuamos desnorteados ou somos devorados pelo monstro. Uma das mais fortes impressões — e admito possa estar equivocado — é a de que, nesse mundo do espetáculo e de celebridades, ficamos condicionados a apenas ver. E deixamos de escutar. Vemos imagens, vemos cenas, vemos a superfície e o exterior de tudo. Mas não escutamos avisos, mensagens, advertências, admoestações, verdades ditas pelo coração, pela consciência e pelos outros. A gula e a ganância entram pelos olhos. A sabedoria e a paz são vozes que se escutam quando permitimos se abra uma pequenina fresta da alma. Ver e escutar são veículos inseparáveis para um mínimo de sabedoria. Minha cozinheira, sem o saber, lamuriava-se de questões que, de minha parte, comecei a entender com o pensamento de Agostinho de Hiponaa. Aliás, espanto-me, cada vez mais, com a capacidade de reflexão, com a sabedoria, com o entendimento de homens que nos antecederam há dois, três mil anos. Mas este é outro assunto. Reflito, agora, em torno de minha cozinheira — “não existo, não vivo para mim, não sou ninguém” — e Agostinho. Em tempos tão diferentes, as questões permanecem as mesmas. Mas Agostinho soube entendê-las. E resolvê-las. Todas as coisas do mundo existem, tudo existe: a pedra, o cadáver, a planta, o homem. Mas nem tudo vive. Pedra e cadáver existem mas não vivem. O homem, as plantas, os animais existem e vivem. Apenas o homem, o ser humano, no entanto, existe, vive e é. E é por ter a razão, a capacidade da escolha, de reflexão. Tem o dom para levá-lo ao livre arbítrio, apesar de tantos obstáculos, de tantas condicionantes, das mil pressões sociais, psicológicas, morais, econômicas etc. Minha cozinheira é um ser humano especialíssimo, mas ela — como quase toda a humanidade ocidental — está perdida no labirinto, com o Minotauro à espreita. E por viver em benefício de tantos, doando-se, amando, dando-se, ela existe e é de um humanismo comovedor. Diferentemente das multidões, ela tem como escapar ao Minotauro. Pois, em seu labirinto pessoal, essa mulher tem o fio de Ariadne, que é a sua fé.

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