PASQUALE CIPRO NETO

'Eu mandava ladrilhar'

Pasquale CIpro Neto
08/05/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 14:40

Na semana passada, trocamos dois dedos de prosa sobre o futuro do pretérito do indicativo. Como vimos, o nome desse tempo verbal traduz o que de fato ele indica: fato futuro em relação a outro, expresso com o/s verbo/s no passado, ou seja, no pretérito. É literalmente um fato futuro em relação a um fato passado. Nosso exemplo inicial foi tirado da canção “Choro Incontido” (melodia de Francis Hime, letra de Paulinho da Viola), em que se encontra este trecho: “Para lembrar de um tempo / Que não vivemos mais / Quando você jurava / Que o nosso amor não morreria”. Vimos também que, como ocorre com qualquer tempo verbal, o futuro do pretérito não é usado apenas com seu valor específico. Pode-se empregá-lo, por exemplo, quando se quer indicar que não se tem certeza da informação transmitida, o que ocorre num caso como este: “A substância faria parte de um grupo de entorpecentes devastadores”. Pois bem. Quero ampliar a conversa sobre esse uso do futuro do pretérito, hoje um tanto exagerado nos meios de comunicação. Por medo de processos, muitos jornalistas não afirmam mais nada de nada, ainda que se trate de reproduzir o que alguém disse a respeito de algo. É um tal de “O médico afirmou que a paciente teria ingerido uma substância entorpecente” quando na verdade o médico afirmou que a paciente ingeriu uma substância entorpecente. O resultado disso é quase tudo fica no ar, sem que ninguém se comprometa com nada de nada. Ainda que o declarante tenha se comprometido, ou seja, tenha dito categoricamente algo a respeito de algo ou de alguém, muitas vezes os jornalistas tratam de transformar a declaração cabal desse indivíduo em uma afirmação incerta. Repito: se um jornalista diz que o médico X afirmou que a paciente Y ingeriu uma substância entorpecente, ele (jornalista) não está dizendo que a paciente ingeriu essa substância; ele está dizendo que o médico afirmou que... Esse horroroso “hábito” gera o surgimento de construções bizarras como “O árbitro teria anulado o gol porque o jogador estaria impedido”. Essa construção foi dita num jogo em que o tal foi mesmo anulado. Ora pipocas! O árbitro teria anulado o gol? Ou o árbitro anulou o gol? Quer outra, tão bizarra quanto? Lá vai: “O suspeito teria morrido porque não teria resistido ao golpe aplicado pelo policial”. Essa pérola foi dita a respeito de um rapaz que de fato morreu, portanto a construção “O rapaz tria morrido” é no mínimo bizarra. O fato de que não se tem certeza não é a morte do tal suspeito, santo Deus! Quer mais um? Lá vai: “O prédio teria caído porque os operários teriam removido uma coluna”. Isso foi dito na TV numa matéria sobre a queda de um edifício. Além da bizarrice, existe o efeito mais do que desagradável dessa repetição interminável das terminações do futuro do pretérito. Por fim, é bom lembrar que na língua oral (do Brasil e de Portugal) e mesmo em textos literários é muito comum o futuro do pretérito do indicativo ser substituído pelo pretérito imperfeito do indicativo. Um bom exemplo disso se vê na conhecida canção da qual se retirou o título desta coluna: “Se esta rua fosse minha, eu mandava ladrilhar...”. Na linguagem formal, técnica, jurídica, filosófica, não se registra esse emprego, ou seja, não se registra algo como “Se fossem tomadas essas medidas, a economia reagia em pouco tempo”. Nesse tipo de texto, o comum mesmo é o predomínio do tempo específico, que, no caso, é o futuro do pretérito. Vamos lá: “Se fossem tomadas essas medidas, a economia reagiria em pouco tempo”. Isso nem de longe quer dizer que o que se fez na letra da canção citada é “errado”. Nada de certo ou errado, nesses casos. Se for preciso, releia este parágrafo.

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