ANDRÉ FERNANDES

Ética antipática

André Fernandes
igpaulista@rac.com.br
13/03/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 01:01

IG-ANDRE FERNANDES (CEDOC)

Certa vez, quando lia a primeira estória da saga do homem-morcego com um de meus filhos, nosso herói, muitos anos depois do assassinato de seus pais e antes de decidir ser um exemplo dramático para as pessoas de sua cidade, já maduro, travava consigo um dilema moral num dos quadrinhos da revista: “O que devo fazer? Como devo viver o resto de minha vida?”.

Supondo que estivéssemos na posição dele, dotados de um intelecto acima da média, uma coragem implacável, muita grana e uma memória constantemente assombrada pela precoce perda paterna, como responderíamos? Alguns diriam: “Vou deixar a vida me levar. Esses dilemas são irrelevantes para mim”. Outros, quem sabe, tomariam outra atitude: “Vou fazer uma terapia para me tornar uma pessoa menos pessimista”.

Também poderíamos dizer: “Preciso tirar as pessoas de bem da apatia moral. Devo combater os criminosos, para que a tragédia que sofri não recaia sobre outros inocentes. Como as estruturas da cidade estão corrompidas, devo agir como um exemplo a inspirar aquelas pessoas”.

Seria uma bela resposta, com a vantagem de que, nesse caso, certamente, seriam escritas muitas histórias em quadrinhos a nosso respeito. Nos casos anteriores, nossos registros seriam feitos por revistas de celebridades ou por prontuários psicológicos...

Muitas vezes, enfrentamos aqueles dilemas, só que em condições e situações bem mais reais que a de uma história de quadrinhos. E, com a mesma frequência, deixamo-nos agir eticamente apenas por concordância com um rol de deveres em que acreditamos, independentemente das consequências, apenas porque o dever em si é mais importante. Essa ética é chamada deontológica, pois tem sua origem etimológica do grego deon, que significa “dever”. O mais famoso defensor dessa ética foi Immanuel Kant (1724-1804), que afirmou que os deveres mais importantes devem ser universais e categóricos.

Por exemplo, Kant afirma que existe um dever ético de não mentir. Utilizando-se de um “paradoxo moral de laboratório”, suponhamos que nosso homem-morcego foi capturado por um vilão e este quer saber onde está seu fiel mordomo. Batman poderia não dizer nada, esquivar-se da pergunta, mas jamais poderia mentir, dizendo que seu mordomo está em certo lugar (porque há uma armadilha à espera do vilão), quando, na verdade, está em outro local. Isso violaria o dever universal e categórico de não mentir.

Esse dever, por ser categórico (sem exceção) e universal (aplicável a todos), muitas vezes, desafia nosso senso mais profundo do dever: o cumprimento do dever pelo dever não transformaria a ética num conjunto antipático de obrigações e proibições?

Quando um advogado precisa despachar comigo, nosso código de ética manda que o magistrado observe o dever de urbanidade. Mas se a urbanidade é uma virtude que pode ser fomentada – afinal, somos aí no mundo com os outros e não uma civilização de eremitas – não seria mais fácil procurar vivê-la com algum esforço a todo tempo, tornando mais fácil o cumprimento daquele código de ética no momento do despacho?

Códigos de ética, sobretudo no âmbito profissional, são, sem dúvida, muito importantes. Mas tendemos a achar que são a tábua de salvação no maremoto, cada vez mais despersonalizado e coisificado, das relações sociais. Esses códigos e suas interpretações, cada vez mais formalistas e apresentadas em tomos cada vez mais volumosos, acabam por criar a ideia de que o dever aparece como o oposto do prazer, quando o dever comporta uma dose apropriada de prazer, como acentuava a ética da antiguidade clássica.

A régua da ética deontológica é a da rigidez moral, bem distante do homem real que somos, formados por razão, mas também por vontade e afetos. Para essa ética, erigida à condição de base da ética moderna e que nos deu valiosas contribuições, a virtude seria a capacidade de realizar ações cada vez mais difíceis, suportando com frieza espartana o esforço que a ação exigiria no caso concreto.

Assim, a virtude estaria em suportar o advogado que despacha comigo, a fim de cumprir formalmente o dever de urbanidade. E não em adquirir esse hábito, que facilitaria a prática profissional de boas ações, que sairiam com naturalidade de nossa vontade, potencializadas pelos afetos.

Tenho a impressão de que, a longo prazo, a ética deontológica, levada às últimas consequências, irá nos conduzir a um pessimismo ético, bem retratada numa tirinha do Calvin, meu filósofo de cabeceira. Ele pergunta para seu pai por que não poderia fazer o que gostasse e deveria sempre fazer o que não gostasse. Seu pai respondeu-lhe sucintamente: “Bem-vindo ao mundo, Calvin!”. Com respeito à divergência, é o que penso.

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