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Este temor é diário

Levantamento da ActionAid mostra que 53%, das brasileiras entre 14 e 21 anos convivem diariamente com o medo de assédio

Daniela Nucci
18/02/2019 às 15:24.
Atualizado em 05/04/2022 às 00:03

Muitas vezes, o assédio começa com uma simples brincadeira ou uma cantada, até que depois parte para algo mais grave e traumatizante. Mais da metade das jovens brasileiras (53%), entre 14 e 21 anos, convivem diariamente com o medo de serem assediadas, segundo a recente pesquisa feita pela organização internacional de combate à pobreza ActionAid. De acordo com a entidade, o Brasil lidera o ranking comparado a outros três países pesquisados: Quênia (34%), Índia (16%) e Reino Unido ( 14%).  O medo de serem vítimas de assédio aumenta de acordo com a faixa etária. Entre as jovens de 14 e 16 anos, o índice é de 41%. Na faixa etária entre 17 e 19 anos, chega a 56%, e entre as adolescentes de 20 e 21 anos, o aumento é de 61%. No total, o estudo ouviu 500 jovens, sendo 250 garotas e 250 meninos, de todos os níveis de escolaridade e todas as regiões, com o objetivo de descobrir quando e onde começa a exposição ao ódio contra as mulheres, chamado de misoginia, e como as experiências generalizadas de assédio sexual ocorrem durante a adolescência. De assovios a mensagensA pesquisa, realizada em dezembro de 2018, mostra que 78% das adolescentes brasileiras foram assediadas de alguma forma nos últimos seis meses. Os tipos foram os mais diversos possíveis. Lidera o ranking o assédio verbal (41%), seguido por assovios (39%) e comentários negativos sobre sua aparência em público (22%), comentários sobre sua aparência nas redes sociais (15%), pedido de envio de mensagens de texto com teor sexual (15%), piadas sexuais que as envolviam em ambientes público (12%), piadas com teor sexual com o nome delas nas redes sociais (8%), beijos forçados (8%), apalpadas (5%), fotos tiradas por baixo da saia (4%) e fotos íntimas vazadas nas redes sociais (2%) foram outras agressões registradas na pesquisa. No estudo, 76% das jovens brasileiras disseram sentir confortáveis com a ideia de contar a alguém o que havia acontecido e 77% das adolescentes entre 14 e 16 anos afirmaram que o tinham feito. Vidas transformadas“Homens que assediam o fazem por diversas razões, incluindo o fato de que foram ensinados, em alguma medida, queisso é normal”ANA PAULA FERREIRA, coordenadora no Brasil "A ideia de que mais da metade das jovens brasileiras sai de casa todos os dias temendo sofrer algum tipo de violência é alarmante. Indica o nível de normalização de atitudes que agridem e provocam danos sobre suas vidas. Sentir medo não é normal”, afirma a coordenadora de Direito das Mulheres da ActionAid no Brasil, Ana Paula Ferreira. “O que algumas pessoas podem achar engraçado, ou mesmo um elogio, faz com que muitas meninas alterem suas rotinas, se desmotivem nas escolas, criem estratégias para transitar pelas ruas, ou mesmo gastem mais dinheiro para evitar se expor nos espaços públicos. São jovens e adolescentes iniciando a vida adulta, e isso impacta seu desenvolvimento pessoal, econômico e social”, alerta Ana Paula. O levantamento também revela que 83% dos brasileiros acreditam que as meninas são mais suscetíveis a assédio do que os meninos. Na desagregação por sexo dos participantes, 85% das garotas concordaram com esta ideia, comparadas a 80% dos garotos. “É importante que esta pesquisa tenha ouvido também meninos, pois a discussão sobre a violência contra a mulher envolve a todos. Homens que assediam o fazem por diversas razões, incluindo o fato de que foram ensinados, em alguma medida, que isso é normal”, pontua Ana Paula. No estudo, as ações que significam desprezo ou desrespeito pelas garotas não são uma exclusividade do Brasil. Três quartos dos jovens dos demais países incluídos na pesquisa revelaram casos de exposição a atitudes negativas ou ofensivas em relação a meninas jovens nos últimos seis meses. No mesmo período, 65% das adolescentes ouvidas enfrentaram alguma forma de assédio sexual. Pessoas da família (39%) e amigos (34%) dos jovens entrevistados estão entre os principais praticantes dessas ações para os brasileiros que afirmaram ter testemunhado algum tipo de atitude depreciativa contra meninas nos últimos seis meses. Quando perguntados em quais espaços viram, ouviram ou leram conteúdos ofensivos ou negativos sobre mulheres, o grupo brasileiro pesquisado respondeu que foram nas redes sociais (55%), filmes ou programas de TV (43%), letras de músicas (34%), e celebridades e personalidades (23%). Conscientização cresce entre jovensUm fator positivo é que a conscientização sobre o assunto parece estar crescendo nesta geração. Quando perguntados no Brasil sobre o nível de tolerância a determinadas agressões, 88% dos jovens (meninos e meninas) consideraram comentários negativos sobre a aparência de meninas inaceitáveis, e 85% se mostraram totalmente intolerantes a piadas sexuais envolvendo garotas – os melhores resultados entre os países. O Brasil também liderou no nível de intolerância a vazamento de fotos íntimas de meninas na internet, com os mesmos 85%. Para 89% dos jovens entrevistados, beijos forçados são inaceitáveis, enquanto 86% consideram apalpadas inadmissíveis. Noventa por cento condenam a prática de tirar fotos por baixo de saias de meninas, também o melhor resultado na comparação entre os países, junto com o Reino Unido. Para todos os tipos de violência, as meninas apresentaram maior nível de conscientização do que os meninos no Brasil. Entre os jovens dos quatro países pesquisados que disseram ter testemunhado situações de assédio sexual nos seis meses anteriores à realização da pesquisa, 85% apontaram a vontade de impressionar os amigos, achar que seria engraçado ou acreditar que isso é “o que os homens fazem” como razões mais prováveis para a atitude do agressor. No Brasil, uma proporção maior de jovens (44%) respondeu que o assédio testemunhado foi motivado pela crença do agressor de que a vítima consideraria um elogio ou ficaria feliz por alguém considerá-la atraente.Os brasileiros também lideram a lista de jovens que acreditam que as meninas são mais suscetíveis a assédio do que os meninos, com 83% das respostas. Educação-> No Brasil, 59% apontaram a necessidade de ensinar os meninos na escola como tratar as meninas. -> Ainda para as salas de aula, 54% disseram que a educação de meninas é medida importante para denunciar casos de assédio.-> Para 41% dos entrevistados, é preciso conscientizar os professores para que levem as denúncias a sério, como também é necessária a educação dos pais. “Nessa idade, essas jovens são mais vulneráveis e ainda não sabem como reagir ou se defender”ANGELA SOLIGO, doutora em psicologia Combate ao machismo “Elogio é diferente de assédio. Dizer que é bonita e inteligente não configura assédio. Já palavras que se refere ao corpo, como gostosa, tem outra conotação, e para as adolescentes, soa agressivo, mais rude”, explica a doutora em psicologia e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Angela Soligo. Para ela, o assédio é uma aproximação, uma tentativa de contato físico não desejado. “A insinuação é feita em público, expõe e constrange a pessoa. Nessa idade, essas jovens são mais vulneráveis e ainda não sabem como reagir ou se defender. Muitas delas não reclamam para não ser duplamente agredidas porque a nossa cultura ainda culpaliza a vítima e vai sempre achar um discurso justificador, onde justifica o agressor e culpa a vítima. Como, por exemplo, dela ter saído com uma saia curta, uma calça justa ou não ter se comportado discretamente para ter sido assediada”, comenta Angela. Para a psicóloga, atualmente, a sociedade está num processo histórico de luta das mulheres para combater o machismo, o assédio para combater a violência de gênero , e isso reflete na educação dos jovens, que são contra essas terríveis atitudes. “A gente tem ou tinha essa educação de gênero na escola. Quando os meninos dizem também que isso é ruim mostra uma educação de combate ao machismo. A minha preocupação, nos tempos atuais, são as tentativas de impedir a discussão dos gêneros na escola. Para onde as nossas políticas atuais apontam. Soa facilitadoras da violência de gênero. Se você não educa os meninos e as meninas para uma visão de mundo antimachista, o que prevalece é a visão machista e as maiores vítimas são as meninas”, diz a psicóloga. “A gente tem que lutar muito porque nós somos uma cultura afundada no poder masculino”, completa Angela. Duas vítimas contam como foram assediadas Metrópole ouviu relatos de duas vítimas, de 21 e 32 anos, que sofreram assédio. Segundo elas, isso causou traumas e o medo permanece, devido ao receio de serem abordadas por homens desconhecidos em ambientes públicos, privados ou de trabalho. Confira as histórias:Traumas A estudante de medicina veterinária D.F. , de 21, anos, diz que seu primeiro assédio foi aos 14 anos, quando começou a carreira de modelo incentivada pela mãe. Ela relata que, quando fez seu primeiro casting, a dona da agência inventou que o mesmo tinha que ser via skype e pediu para ela mandar fotos mais provocantes e ligar a webcam. “Ela começou a se despir e disse que tinha que fazer o mesmo, já que era normal da profissão, pois tinha que ver todos os traços do meu corpo. Achei estranho e era bem ingênua. Na época, tive uma luz e vi que era errado, então pedi orientação para minha mãe, que ficou muito brava . No dia seguinte, fizemos o boletim de ocorrência. No começo do ano fui intimada sobre o caso e como eles não tinham mais provas e pessoas que denunciavam, eu mesma disse que não queria mais saber deste caso, que foi encerrado ”, diz a jovem, que ficou traumatizada. “Depois modelei um pouco, mas fiquei com medo e perdi ótimas oportunidades. Terminei o colegial novinha e entrei na faculdade. Não quis mais fazer modelagem. Com 18 anos, voltei a fazer eventos e feiras porque gosto da parte de produção e recepção , até acontecer o segundo assédio”, diz. Durante uma festa em um bufê infantil, ela estava como recepcionista da festa e a missão era receber os ingressos dos visitantes. “Foi bem traumatizante. Estava na recepção e tinha que pegar os ingressos. Um moço tinha esquecido o ingresso no carro e queria entrar. Disse que não poderia e ele ficou bravo, me xingou, gritou comigo. Pedi para a direção da casa me ajudar e comecei a chorar . No final, voltei para o trabalho mais calma e o homem entrou na festa após buscar o ingresso. Ele esfregou no meu rosto e falou coisas horríveis. Fui para o banheiro, fiquei quase duas horas chorando e depois fui embora arrasada”, conta D, que ainda relembra outras cenas humilhantes e comentários machistas durante outros eventos noturnos. “A gente acaba ficando quieta por não ter voz, força e por achar que outras mulheres vão nos julgar pelas nossas roupas e atitudes. A nossa sociedade é muito triste”, finaliza a jovem. No trabalho A administrada A C, de 32 anos, nunca vai esquecer do constrangimento e assédio moral que passou no ano passado, quando era assistente administrativa numa empresa multinacional. “Tinha um analista contábil que trabalhava comigo e era extremamente grosso com todo mundo. Sempre fui bem arrumada em todo serviço, sou divorciada e percebi os olhares dele para cima de mim, logo no início. Ele é casado e tem dois filhos. Olhava para o meu decote e me tratava mal. Estava exposta a um pit bull.Fazia comentários machistas nos corredores, mas ninguém falava nada, cada um tinha o seu mundo. Aprendi tudo em três meses, até que um dia precisei sair mais cedo e fui falar com se precisava de mais alguma coisa, quando ele disse que precisava sim, mas que se referia aos problemas pessoais dele, com cara de tarado. Na hora, disse que ele tinha que me respeitar e ele deu risada. Levantei e ele pediu para ficar mais um pouco. Voltei no dia seguinte e trabalhei normal. Uma semana depois, estava na cozinha e derrubei café no chão. Agachei para limpar a sujeira quando percebi que ele estava atrás de mim com aquela cara de sem vergonha, e falou: “Pelo amor de Deus, não faz isso na minha frente”. Não estava com roupa escandalosa e usava calça normal.Fiquei assustada com esse tipo de comentário. Era nova de empresa e fiquei com medo de ser mandada embora e não tive reação. Na hora falei com minha chefe, que era minha amiga e arrumou o emprego para mim. Ela disse que ia falar com ele. No outro dia estava na sala e vi o computador dele ligado e percebi que ele conversa com diversas mulheres em sites de relacionamentos. Pedi demissão. Não fui dar queixa porque comprometeria minha chefe. “Devido ao medo que fiquei faço artes marciais para me proteger desse tipo de homem covarde. Hoje vivemos num mundo machista. Se você é bonita e tem o corpo em forma, sofre esse tipo de assédio. Se sabem que é solteira, acham que você é galinha por receber muitas mensagens, e os caras acham que é cantada direto, e não é ”, dá seu recado.

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