RODRIGO DE MORAES

Essência

Rodrigo de Moraes
21/05/2015 às 11:49.
Atualizado em 23/04/2022 às 12:59
ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

Vi B.B. King a poucos metros de mim no aerporto Salgado Filho, em Porto Alegre, lá por 1985. Ele conversava tranquilamente com alguém, decerto alguém de sua equipe, perto do portão de desembarque. Não havia frisson, não havia assédio de fãs, nada. Só B.B. King parado ali, com seu corpanzil proporcional ao seu status de gigante da música. Eu devia ter uns 16 anos, mas sabia bem quem ele era — uma sumidade do blues, gênero que, acredito, estava começando a ficar popular no Brasil naquela época.Era facílimo eu, naquela situação, me aproximar dele, cumprimentá-lo e pedir um autógrafo. Ele poderia até recusar — o que duvido, dado os modos generosos e bom humor pelos quais ficou conhecido —, mas eu guardaria para sempre a lembrança de ter trocado algumas palavras com um dos maiores bluesmen que já caminharam sobre a Terra. Mas não aconteceu nem uma coisa, nem outra: me deixei vencer pela timidez, fui andando em direção à saída, meio derrotado, e um eventual papel em branco que poderia ter sido grafado para sempre com as iniciais B.B. e o sobrenome King, talvez acompanhados de uma saudação como “All the best” ou da declaração “I got the blues”, continuou em branco. Com a morte do “Rei do Blues”, na última quinta-feira, os jornais reproduziram declarações de artistas nas redes sociais a seu respeito. Duas delas, postadas por Lenny Kravitz e Bryan Adams no Twitter, diziam basicamente a mesma coisa: “Por mais notas que toquemos, nunca vamos conseguir dizer aquilo que você, B.B., dizia com uma só nota”. E isso me chamou a atenção para aquilo que eu já sabia. B.B. King era um guitarrista conhecido por tocar frases curtas e certeiras. Empunhando sua “Lucille”, como ele chamava a(s) sua(s) guitarra(s) Gibson ES-355, King conhecia do poder da máxima “menos é mais”, e a seguia religiosamente. Um exemplo? As maneira com que pontua os primeiros versos de The Thrill Is Gone, muitas vezes com uma só nota, sustentada por sua peculiar técnica de vibrato (sempre achei curioso a maneira como ele vibrava a mão esquerda, com o polegar estendido, para manter a nota soando). Ou, nesse mesmo blues, o jeito sereno e econômico, ainda que cheio de sentimento, com que desfia sequências melódicas e frases, como se elas sempre estivessem ali. * * * * * * * * * Menos é mais — com outras palavras o escritor e tradutor Eric Nepomuceno disse a mesma coisa em uma palestra a que assisti na época de faculdade, na PUC. “Escrever é recortar”, pontificou o palestrante, que fumava um cigarro atrás do outro e tinha por isso uma gravidade tonitruante na voz. Por “recortar”, disse Nepomuceno, entendesse-se eliminar do texto palavras que se revelassem, em uma segunda, terceira lida, meros penduricalhos, que nada acrescentassem ao que estava sendo dito, que fossem um entrave à elegância do português. Procuro, quando possível, quando consigo conceder a mim mesmo alguns momentos de serenidade, seguir o conselho. Às vezes acerto. * * * * * * * * * Ao longo da vida, Michelangelo Buonarroti produziu três esculturas (a última ficou inacabada com sua morte) sob o tema da Pietà, que representa o Cristo morto. A mais famosa delas, exposta na Basílica de São Pedro, no Vaticano, é quase etérea em sua perfeição. Outra, exposta em Florença, chama-se Deposição e parece ter ficado inconclusa. Na primeira, a figura da Virgem Maria, irretocável, parece pairar acima do sofrimento, e na segunda, que está terminada, ela é representada com traços imperfeitos. A Pietà do Vaticano foi concluída quando o artista tinha 20 e poucos anos, e a de Florença, quando era septuagenário. O que se pode depreender disso é que, nesse intervalo de tempo, Michelangelo deixou de lado a busca pela perfeição da forma e passou a buscar a essência. Menos é mais.

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