Renato Nalini é desembargador, reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove, palestrante e conferencista (DIVULGAÇÃO)
Discutiu-se esta semana o chamado “direito ao esquecimento”, porque os irmãos de Aída Curi questionaram o STF e pretenderam condenação da TV Globo. Vivenciei esse crime ocorrido no Rio de Janeiro, com certa proximidade. Os dois irmãos de Aída Curi, que foi “currada” e morta em Copacabana, eram seminaristas da Ordem Salvatoriana, em Jundiaí. Eu cursava o ginásio no Divino Salvador e nossas aulas eram comuns. Os dois eram estudiosos e atletas. Já usavam batina e tonsura. Não sei se chegaram a se ordenar ou não. Ocorre que o assassinato chocou o Brasil. Os dois responsáveis eram considerados “play-boys”. Expressão que o tempo engoliu. Atraíram a jovem para um apartamento e, como ela se recusasse a servir aos seus instintos, a jogaram no passeio. Meio século decorreu. Os irmãos sustentam que não era necessário reviver uma tragédia que marcou profundamente a vida familiar e seu círculo de amizades. A vida foi se recompondo com o fluir do tempo, remédio para quase tudo. A veiculação de um triste episódio no programa “Linha Direta” reacendeu o sofrimento, rasgando cicatrizes que tanto demoraram a se formar. O sangramento d’alma ressurgiu com força. A tese é apaixonante e polêmica. Impedir a veiculação de fato notório e público, assunto exaurido na mídia à época, é prestigiar a censura, vedada pelo pacto fundante. Compreensível a dor dos irmãos. Eles têm razão quando pretendem exercer o chamado “direito ao esquecimento”. Aceitemos que ele existe, mais um direito fundamental na cornucópia infinita que começou no artigo 5º da Constituição Cidadã e se irradia por setenta e oito artigos. Com porta aberta ao ingresso de tantos outros que venham a surgir, seja por interpretação criativa, que os considere implícitos ao sistema ou pela porta de ingresso dos tratados de que o Brasil fizer parte. Mas seria factível a plena observância desse bem da vida? A sociedade contemporânea parece ignorar o confronto entre privacidade e transparência, optando por exercer esta última, um bastião republicano. Como proteger a intimidade se as modernas tecnologias propiciam abusiva exposição de fotos, de mensagens, de exibição de momentos que deveriam permanecer sob discreta proteção? Os selfies são o testemunho eloquente da prioridade a que se curvaram os usuários das redes sociais. Tudo é motivo para uma excessiva divulgação da própria vida e daquela das pessoas sob sua órbita. Qual o valor dessa opção pelo ocultar da própria existência, que legitimaria a pretensão ao esquecimento? A humanidade precisa se compenetrar de que a verdade é um sol que pode parecer às vezes encoberto pelas nuvens. Mas uma hora ele as atravessa e brilha radioso. Pode ser tépido, mas também é capaz de queimar. Assim é a luz saneadora da verdade, que deveria prevalecer em cotejo com a mentira ou com a miséria da pseudoverdade. Nada consegue se ocultar para sempre. Lembram-se do “há quem consiga esconder algo de muitos por longo tempo. Há quem consiga esconder tudo de alguns. Mas não há quem consiga esconder tudo de todos, durante todo o tempo”. Não dispomos de tática para fazer retornar o que já foi. Qual fantasma indesejável, tudo pode reaparecer a qualquer momento. Há tentativas até exitosas de reescrever a História. Mas a vulnerabilidade é um risco inevitável. Até no Brasil, terra em que se tenta redesenhar o passado e colori-lo com as cores da ideologia que se adota. Quanto a esquecer, o tempo também atuará no sentido de fazer com que os fatos sejam cobertos pelo olvido. A fragilidade humana responde com o mal de Alzheimer, com a demência, com a senilidade acarretadora de anomalias das quais ninguém está liberto. O melhor remédio é conviver com as memórias. Elas fazem parte de seu trajeto. Não dá para fazer uma escolha à la carte. Tudo o que se experimentou, está aí para nos acompanhar. Para o bem, mas também para afligir, angustiar e machucar. Renato Nalini é desembargador, reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove, palestrante e conferencista