Odette celebra seu aniversário de 89 anos em festa organizada pela sobrinha Nayara na casa de repouso onde passou seus últimos meses de vida (Divulgação)
A locomoção limitada e a dificuldade em reconhecer as pessoas não tiravam o sorriso do rosto. A mulher negra que veio da roça e construiu uma trajetória de luta em Campinas viveu seus últimos dias com a alegria que uma infecção crônica não foi capaz de vencer. "Ela estava feliz", atesta a sobrinha e afilhada Nayara Pedroso da Silva, que acompanhou de perto a última batalha da multicampeã Odette Valentim Domingos. Ícone do atletismo, "Tia Odette", como era conhecida, morreu na última segunda-feira, aos 89 anos, deixando um legado de inspiração.
A morte da ex-atleta de arremesso de disco e de peso provocou uma comoção na cidade. As manifestações partiram de todos os lados. Clubes, Prefeitura, Exército, pessoas que conviveram com ela e principalmente fãs fizeram questão de expressar a importância daquela que conquistou mais de três mil troféus e medalhas em competições nacionais e internacionais, além de batalhar pela inclusão da mulher no esporte.
"O que ela deixa é que nós não podemos desistir nunca daquilo que queremos para a nossa vida", diz a sobrinha Nayara, que tem uma trajetória de vida intimamente ligada a da tia. "Na família, era somente eu e ela", conta a filha de uma das irmãs de Odette. Ela perdeu a mãe aos 16 anos de idade e passou a ser cuidada pela ex-atleta. "Ela sempre foi minha inspiração de vida. Dizia para eu não duvidar de mim mesma e ter força e persistência", relata Nayara, hoje com 35 anos. "Foi por causa dos conselhos dela que perdi o medo, me formei em Recursos Humanos e comecei a Faculdade de Direito."
O que Odette passava para a sobrinha era experiência própria. Filha de um casal de lavradores que vendia frutas e legumes na feira, a menina humilde chegou em Campinas aos 17 anos. Foi como empregada doméstica que trabalhou para poder sobreviver. Entrou no atletismo ao conhecer Argemiro Roque, técnico do Clube Campineiro de Regatas, com quem teve um relacionamento. No esporte, sua trajetória foi simbólica. Conquistava vitórias e marcas mesmo usando sapatilhas remendadas por esparadrapos ou disputando provas com o joelho lesionado. Chegou a quebrar o recorde mundial no lançamento de disco, com 53m, e os títulos nacionais e internacionais se acumulavam mesmo depois da idade avançada, quando passou a disputar a categoria master.
"Foi uma mulher negra que com 40 anos entrou na Faculdade de Educação Física, numa época que isso não era comum", comenta a sobrinha. Como professora, fez história na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), de Campinas. Não chegou a ser mãe, mas dizia que os alunos eram seus filhos.
Ex-atleta tratava os alunos da EsPCEx como filhos (Divulgação)
OS ÚLTIMOS DIAS
Nayara conta que há cerca de 1 ano e meio precisou parar de trabalhar para ajudar a tia. "Na primeira internação por infecção ela ficou dois meses no hospital e 15 dias na UTI", lembra. Os últimos meses de vida Odette passou em uma clínica de repouso por recomendação médica. "Eu ficava com ela na clínica todos os dias, de segunda a segunda", diz a sobrinha, que em setembro organizou uma festa no local para celebrar o aniversário de 89 anos da ex-atleta.
Ao mesmo tempo em que acompanhava a tia na clínica, Nayara também cuidava da casa onde Odette viveu ao lado de 11 cachorros, seis papagaios, cinco calopsitas, um pássaro preto, um canário e um jabuti no Jardim Flamboyant. Na última segunda, ao comunicar a morte da tia, Nayara resumiu a importância dela para sua vida: "Ela era minha inspiração de mulher, de ser humano, de vida, de tudo. Minha rainha."
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