O zagueiro teve sua convocação sacramentada para a Copa do Mundo de 1986
O zagueiro, Júlio César (Pesquisa Wiliam Ferreira)
Conversar com jogadores de futebol é uma oportunidade de relembrar partidas, conquistas, obstáculos e o legado construído. São poucos os atletas que, mesmo após pendurarem as chuteiras, conseguem transmitir uma sensação ao interlocutor de que ali não existe apenas um boleiro ou alguém que teve seus instantes de glória. Existe um cidadão do mundo. Pronto para transmitir tudo aquilo que aprendeu nos cinco continentes. Residente em Campinas, com 60 anos, o ex-zagueiro Júlio César é um raro exemplar deste perfil.
Ele tinha tudo para ser um jogador de futebol comum. De 1981 a meados de 1986, o beque disputou 226 e teve 10 gols anotados com a camisa do Guarani. A força física, o bom aproveitamento no jogo aéreo , o passe eficiente na saída de bola chamaram atenção do técnico Telê Santana. Teve sua convocação sacramentada para a Copa do Mundo de 1986 no México. A eliminação doída, nos pênaltis, para a França não foi suficiente para impedir uma mudança de rumo. A partir daí, a galeria de títulos aumentou no mesmo ritmo dos carimbos nos passaportes.
A primeira parada foi no Brest, para disputar o Campeonato Francês. Precisou de apenas 32 jogos para viabilizar uma transferência ao Montpellier. Com 96 jogos e um título da Copa da França em 1989/1989 e de novo Júlio César arrumou as malas. A próxima parada foi na Juventus de Turim. Ali, desafiou o domínio de Internazionale, Milan e Napoli.
Mais 125 jogos na bagagem e a consagração apareceu no Borussia Dortmund. Comandou uma geração de ouro que faturou duas edições do Campeonato Alemão, nas edições de 1994–95 e 1995–96. O ponto máximo, no entanto, foi a conquista da Liga dos Campeões em 1996-1997 e o Mundial Interclubes de 1997, quando bateu o Cruzeiro na decisão no Japão. O zagueiro ainda teve passagens por Botafogo (RJ), Panatinaikos (Grécia), Werner Bremen e encerrou sua trajetória no Rio Branco aos 37 anos.
O contato com diversas culturas lhe fez chegar a conclusão de que alguns conceitos devem ser valorizados. Ele toma como exemplo o Borussia Dortmund, que até os dias atuais lhe chama para jogos amistosos e homenagens. “Os alemães são gratos e solícitos. Lembram de todos os bons momentos. Quando cheguei na Alemanha, o Borussia não tinha a expressão que tem hoje. Com a minha chegada, em alguns anos, levamos o time de patamar mediano para um clube importante ao lado do Bayern Munique”, afirmou o ex-jogador.
Na sua visão, essa gratidão é reflexo da própria característica do clube. O torcedor lotava em todas as rodadas o Signal Iduna Park, com capacidade para 81.365 torcedores. “Lota em qualquer partida e não é somente em clássico”, afirmou o ex-jogador.
Amoroso e Júlio César sempre participam de eventos do Borrussia Dortmund (Divulgação)
O conhecimento acumulado nos gramados faz Júlio César compreender alguns fenômenos recentes, como a transição do futebol italiano, que de coqueluche nos anos 1980 e 1990 perdeu o seu protagonismo para as Ligas da Inglaterra e Espanha. “Na década de 1980 era o melhor do mundo e começaram a intensificar a chegada de jogadores de outros países europeus. Com isso, eles deixaram de investir nas categorias de base e perdeuse a chance de crescimento desses atletas”, lamentou Júlio César. “É só pegar o Milan ou a Internazionale. Só tem jogador europeu”, completou.
O olhar aguçado faz com que Júlio César destine preocupação ao seu lugar de origem. Para ele, tanto Guarani como Ponte Preta perderam a caracteristica de revelar bons jogadores e depois revendê-los ao mercado mundial e com isso assegurar a sobrevivência financeira. “Os clubes perderam a identidade em relação a isso (revelação de jogadores). Por mais que tudo tenha evoluído e mudado, as características deles é revelar para vender e sustentar o clube em um patamar de elite”, completou Julio César, antenado nas origens mas sem se desligar do mundo.
Julio César ao lado de Water Feldman, ex-dirigente da CBF (Divulgação)
TÉCNICOS PRECISAM DE PREPARO, AFIRMA EX-ZAGUEIRO
Ao contrário de outros personagens do futebol brasileiros, sedentos em defender a capacidade dos técnicos nativos, o ex-zagueiro Júlio César tem posição cautelosa sobre o tema. Na sua visão, é preciso entender que não é por acaso a hegemonia de técnicos portugueses. O estudo, a busca constante de atualização e a conexão com aquilo que é praticado no futebol europeu são fatores decisivos para os portugueses definirem os rumos no esporte local. “O que precisamos é capacitar os treinadores (Brasileiros) para que eles tenham oportunidade de chegar aos grandes clubes da Europa”, completou.
Um sintoma de que algo está fora do roteiro, segundo Júlio César, é a própria trajetória do técnico mais vitorioso do Brasil na atualidade. “O Abel Ferreira (técnico do Palmeiras) nunca treinou um time de expressão. Veio para um gigante como o Palmeiras e com sua capacidade levou a equipe a um patamar importante no cenário nacional”, disse.
E os treinadores brasileiros? Júlio César reconhece a capacidade dos treinadores nativos, mas acredita que existe a necessidade de buscar ir além do trivial. “Quando você precisa transmitir instruções e comandar uma equipe (da europa) é preciso dominar um outro idioma”, apontou.
Ele não deixa de apontar atitudes equivocadas por parte da CBF. A principal é a de ministrar um curso de habilitação aos treinadores cuja validade se restringe apenas ao território nacional. Por outro lado, ele cita técnicos que auxiliaram em sua carreira, como Telê Santana e Zagallo, com os quais trabalhou na Seleção Brasileira, e Zé Duarte, treinador do Guarani na década de 1980.
Para Júlio César, um bom treinador melhora o rendimento do jogador. “Se existe um comandante que te passa confiança, tranquilidade e acredita no seu potencial isso faz o jogador evoluir. O treinador tem que ser gestor e psicólogo. Ele precisa ser tudo para tirar o melhor do jogador”, completou o ex-jogador.
(Pesquisa Wiliam Ferreira)
COMBATE AO RACISMO PRECISA SAIR DA TEORIA PARA A PRÁTICA
Após sair do Guarani, após a Copa do Mundo de 1986, Júlio César jogou na França, Itália, Alemanha e Grécia. Tem uma visão ampla de todos os assuntos relacionados a cidadania. Quando é chamado a analisar a questão do preconceito racial, o ex-jogador cita primeiramente conceitos básicos. O principal é que o racismo é algo que sempre existiu. Diante disso, a ordem é jamais se intimidar. “Eu sei que sou negro, tenho minha personalidade, com medos e defeitos. Mas eu não fico me vitimizando. (O racismo) existe, sei que é algo chato e que ocorre constantemente. Mas vamos tocar a bola porque é algo que infelizmente não vai mudar porque está enraizado no Brasil”, disparou.
O principal lamento de Júlio César é que, a cada episódio de preconceito racial, tudo fica nas declarações de repúdio enquanto a punição fica longe de acontecer. “Todo mundo fala mas ninguém toma uma atitude. São apenas comentários”, lamentou Júlio César.
O quadro produz situações insólitas, de acordo com o ex-jogador. “Outro dia eu vi o Tinga declarar que só procuram ele para falar de racismo. Ninguém liga para questionar o que ele anda fazendo. Quando tem polêmica sobre racismo eles lembram os negros”, disse. “Temos que lembrar as pessoas como pessoas e somente no momento da discriminação”, arrematou.