realização de um sonho

Milhares de garotos pegam pesado nos gramados

Não tem vida fácil para os que vislumbram o sucesso no futebol. É esforço diário, distância da família e privações

Renato Piovesan
16/02/2019 às 21:20.
Atualizado em 05/04/2022 às 00:07

Dizem que vida de jogador de futebol é fácil. “Olha lá eles, ganhando milhões só para correr atrás de uma bola”, falam por aí. Pergunte para Thiago Oliveira, de 17 anos, se é tão mole assim. Diariamente, ao acordar, o adolescente dá um beijo nas fotos de seus avós e tios que o criaram no pequeno município de Cocos, interior da Bahia. Depois, já calça a chuteira. É hora de treinar. Hora de correr atrás de uma bola, mas não para ganhar milhões (ainda, espera), e sim, para buscar um sonho. O mesmo sonho de milhares de garotos que, como ele, abrem mão de muita coisa para vestir a camisa de grandes clubes do futebol um dia. O mesmo sonho interrompido para dez garotos que defendiam o Flamengo até semana passada. Nesta semana, o Correio Popular visitou as dependências do Recanto da Macaca, o centro de treinamento das categorias de base da Ponte Preta, localizado em Jaguariúna, e conheceu de perto como é a vida de garotos como Thiago, que vivem em alojamentos de times de futebol, longe da família, em busca do sucesso na carreira esportiva. O jovem baiano mora no Recanto da Macaca há dois anos e nove meses. Lá, estão alojados outros 70 garotos. “Todos aqui já viraram meus irmãos, mesmo, só que de outras mães. Pela convivência, o clube virou minha segunda família”, conta. A primeira família, da Bahia, passou por dificuldades quando Thiago era criança e ainda nem imaginava que pudesse chutar uma bola. “Na minha cidade quase nem brincava com bola. Eu brincava mesmo com vaca, gado e carro de boi. Quando eu tinha seis anos, meus pais se mudaram para São Paulo (Guaíra, mais precisamente) para buscar emprego, aí vivi com meus avós. Só quando completei 10 anos que voltei a morar com meus pais e me matriculei numa escolinha de futebol”, lembra. Quatro anos depois, ele vestiu a camisa da Ponte Preta pela primeira vez. “Foi a maior alegria da minha vida ser aprovado numa avaliação na Ponte. Agarrei a oportunidade mesmo. Mas tenho outro sonho de jogar profissionalmente agora”, comenta Thiago. É o mesmo sonho de todos seus “irmãos” da alvinegra, aliás. Dã Moroni, 16, mora há dois anos no Recanto da Macaca e quer ser goleiro profissional daqui a alguns anos. Quem sabe, como Ivan, atual goleiro titular dos profissionais da Ponte, e que morava no mesmo alojamento dele até três anos atrás. “Não é fácil ficar longe da família e da namorada. Às vezes, dentro de campo, a gente até nem rende porque fica com a cabeça pensando neles. Mas temos que fazer de tudo por este sonho que estamos tentando realizar”, afirma o jovem, nascido em Presidente Prudente e que só vê os familiares nos feriados em que não há jogos e nas férias escolares de julho. A rotina de atletas como Thiago e Dã é bem diferente daquela de jovens da mesma faixa etária deles. Eles até se misturam aos demais adolescentes quando vão para a escola, mas as semelhanças param por aí. Vai ter um aniversário no fim de semana? Thiago e Dã não podem ir, vão jogar. Ou, se estão de folga, devem voltar ao clube antes das 23h. Bebida alcoólica? Nem pensar. Se querem ganhar milhões como Neymar um dia, os jovens atletas precisam seguir uma vida regrada até conquistarem seu espaço. Na Ponte, os garotos acordam às 6h30, tomam café da manhã às 7h, treinam das 8h30 às 11h, almoçam e em seguida vão para a escola. Quando voltam ao Recanto da Macaca, só resta tempo para fazer mais alguns trabalhos, jantar e dormir. “Às vezes a gente dorme mais tarde porque rola uma resenha nos quartos”, brinca Dã. É assim todo dia, de segunda a segunda. E é assim na Ponte, no Guarani, no Corinthians ou no Flamengo. Na Macaca, o centro de treinamento inaugurado em 2013 para as categorias de base fica num terreno de 94 mil metros quadrados, cercado de área verde e às margens do Rio Jaguari. São 86 leitos, em quartos com beliches para abrigar até quatro garotos. O local conta com quatro campos, sendo um com medidas oficiais e outros três para treinos em campo reduzido. Assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e nutricionistas são encarregados de suprir a ausência dos pais dos garotos em fase de crescimento, numa fase de incertezas e de definições como é a adolescência. Alojamento em casas de alvenaria Se a Ponte Preta tem o Recanto da Macaca, o Flamengo possui o Ninho do Urubu, patrimônio do clube carioca localizado no bairro de Vargem Grande, no Rio de Janeiro. O módulo das categorias de base, onde ocorreu o trágico incêndio no último dia 8, recebeu investimentos de R$ 15 milhões entre 2014 e 2016. Na Ponte, os alojamentos são casas de alvenaria, que no passado serviram até de abrigo a dependentes químicos. No Flamengo, os jovens residiam módulos habitáveis, popularmente apelidados de contêineres, formados por chapas de aço com poliuretano. Não havia autorização dos Bombeiros para que pessoas morassem ali. O fogo foi fatal. 

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