Ato é de uma morte que já aconteceu simbolicamente, explica a psicanalista Tatiana Girardini
É importante que a família saiba encaminhar a situação contando com o apoio de profissionais capacitados para identificar o risco ( )
Tirar a própria vida. O suicídio é um ato em que as pessoas e o próprio noticiário tendem a focar no individuo que o cometeu, algo simplesmente particular. Porém, o ato de dar cabo à própria vida não é um acontecimento isolado, pregam correntes de estudiosos sobre os comportamentos humano e social.É um erro focar a explicação somente no suicida. Razões sociais também levam a atos extremos, no caso abreviar a própria existência.Recentemente, a polícia piracicabana registrou dois casos. Um motorista, com problemas de alcoolismo, se enforcou com a cinta da calça. Em outro, uma secretária atirou no próprio peito, dentro do seu carro. Não há estatísticas oficiais disponíveis sobre o número de casos no município.O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) é quem desenvolveu um método de análise utilizado pelas Ciências Sociais, por meio de estudo sistemático de um ato social aparentemente simples, mas que na verdade é tão complexo como os homicídios.Examinando todas as variáveis pertinentes, Durkheim - considerado o pai da sociologia -, chegou a uma conclusão e formulou uma explicação efetiva.Sua análise revelou que variações nas taxas de suicídio entre grupos diferentes não podiam ser explicadas por enfermidade mental, fundo étnico ou racial, ou até mesmo pelo clima. O sociólogo concluiu que havia algo sobre o próprio grupo em si que encorajaria ou desencorajaria o suicídio.Durkheim chegou a identificar quatro tipos diferentes de suicídio, todos mantendo uma relação entre o indivíduo e o grupo social.De acordo com o sociólogo, os tipos de suicídio são: o suicídio egoísta, o altruísta, o anômico e o fatalista.O suicídio egoísta acontece sob condições de isolamento excessivo, quando a pessoa é separada do grupo que poderia ter obtido sua lealdade e participação. Uma pessoa excluída da família ou dos amigos pode se sentir de tal forma ignorada que, num ato extremo, vê que a vida perde o sentido fora daquele grupo.Já o suicídio altruístico ocorre em condições de apego excessivo e sua vida passa a não ter nenhum valor independente. Um exemplo muito atual são os terroristas que em ato de fanatismo (religioso-político) cometem suicídio amarrando bombas no próprio corpo e explodindo em locais públicos. O atentado suicida mais tenebroso de nossos tempos aconteceu em 2001, nos Estados Unidos, quando dois aviões foram lançados no World Trade Center.O suicídio anômico ocorre sob condições de anomia, isto é, quando os valores tradicionais e as diretrizes para o comportamento desmoronam. Há ausência de normas em uma "sociedade desorganizada". Um exemplo trágico é o desmantelamento de uma família. Um adolescente nessas condições pode chegar a uma atitude mortal.O suicídio fatalista tem a ver com o controle excessivo das emoções e motivações de um indivíduo ou grupos. Historicamente, um dos casos mais conhecidos foi o do pastor norte-americano Jim Jones e sua seita, "O Templo do Povo". Em novembro de 1978, mais de 900 pessoas morreram ao ingerirem suco de laranja com cianureto, na Guiana.Na forma de suicídio, as pessoas são influenciadas de tal forma que tomam atitudes coletivas e quase sempre fatais.E ação suicida não se resume a acontecimentos urbanos. Há registros de acontecimentos inclusive envolvendo tribos indígenas.No livro "Introdução à Sociologia" (de Reinaldo Dias - Editora Pearson Prentice Halll) é possível ter acesso aos detalhes da pesquisa de Émile Durkheim."A abordagem "durkheimiana" para o tema é importante, mas não suficiente. Penso que a importância deste estudo esteja em trazer para o debate público uma questão que até então parecia pertencer apenas ao foro mais íntimo", contrapõe a psicanalista e socióloga Tatiana Campanhole Gerardini. "O sujeito que pode suicidar-se traz um histórico de sofrimentos", afirma. Tatiana ainda aborda a questão familiar nos potenciais casos de depressão e riscos de acontecimentos trágicos. Viagem sem voltaA viagem sem volta do suicídio é observada como um tema bastante complexo pela psicóloga Lucelena Nogueira. Questões financeiras ou desapego à própria existência podem levar a um suicídio? "O que podemos entender, de um modo superficial, é que um suicida não encontrou nenhuma outra forma de lidar com seus conflitos", entende a psicóloga. Isso pode ocorrer em casos pontuais (um problema eventual) ou um estado mais crítico, isto é, problemas que se avolumam durante longos períodos da vida.Há dificuldades para notar se uma pessoa em problemas é ou não potencialmente um suicida, segundo diz Lucelena Nogueira. É um "aspecto emocional" muito íntimo chegar ao ponto de tirar a própria vida."Muitas vezes suicidas deixam bilhetes comunicando suas razões pela desistência dessa vida. Podemos olhar para isso como um último desabafo sem direito a resposta. Essa pessoa não conseguiu pedir ajuda, não conseguiu o olhar que precisava enquanto vivia e que a fizesse duvidar de sua motivação para morrer", explicou a psicóloga.Aquelas pessoas mais deprimidas, que se comunicam pouco e não encontram prazer em nada do que fazem podem em algum momento desejar o fim de sua vida. "Mesmo assim não serão todas que terão coragem de chegar ao ato. Essas pessoas são capazes de se refazerem emocionalmente com ajuda de terapia e remédios a ponto delas compreenderem suas questões, superá-las ou conviver com elas", explica.Há tragédias quando primeiro a pessoa mata e depois se suicida. "Logo após cometer a chacina, também se matam para encerrar o ciclo de violência da qual foi vítima e também vitimou. Porém, a maior parte dos suicidas cometem o ato de forma isolada, solitária, tanto quanto foi a própria vida", explica a psicóloga.E não é exatamente o local que propicia o suicídio. "Em lugares populosos ou calmos há ocorrências. Isso nos faz pensar novamente que o suicídio é um ato referente às condições emocionais e individuais de cada sujeito e a forma como ele consegue se posicionar diante de seus conflitos", explica a psicóloga.Vida ou morte Quando o assunto é suicídio, a psicanalista e socióloga Tatiana Campanhole Gerardini cita o livro “O tempo e o cão” (psicanalista Maria Rita Kehl - Ed. Boitempo Editorial). “Baseado em estudos norte-americanos, o livro relata que em média 15% das pessoas deprimidas cometerão suicídios. Entre 1980 e 1990, os suicídios entre jovens e crianças entre 10 e 14 anos aumentaram em 120%, diz o livro. A Organização Mundial de Saúde considera o suicídio como um problema crescente e preocupante”, descreve a psicanalista Tatiana. “Para abordar o tema, vou me deter ao suicídio melancólico e/ou depressivo. Existe uma correlação entre quadros depressivos e o suicídio. Isso não significa que a presença da depressão ou de um quadro pontual depressivo implique, necessariamente, neste desdobramento trágico. O depressivo traz à tona, e atualiza com seu próprio corpo e subjetividade, o mal-estar de nosso tempo. Assim, falarmos nestas questões é considerar a dimensão cultural que a envolve bem como não esquecer a irredutibilidade da singularidade dos sujeitos”, explica. “O sujeito que pode suicidar-se traz um histórico de sofrimentos, de marcas indeléveis de dores que se tornam insuportáveis. Assim, morrer parece ser menos dolorido do que viver. Na verdade, o suicídio é o ato de uma morte que já aconteceu simbolicamente. Neste império do vazio sem borda que se alarga até ao nada, o sujeito mergulha e se afoga. Nesta perspectiva, quando todos os sentidos da vida caem para uma pessoa, há o risco do suicídio”, aborda a psicanalista.É importante que a família saiba encaminhar a situação contando com o apoio de profissionais capacitados para identificar o risco. Capazes de ouvir esta forma de sofrimento e, quando necessário ou legítimo, intervirem junto ao paciente sobre a possibilidade de uma internação. “A decisão sobre a internação ou não é um problema difícil e delicado. Não pode ser uma decisão que objetiva um apagamento ainda maior do sujeito em sofrimento e menos ainda uma tentativa de descompromisso da família, um livrar-se do problema”, orienta Tatiana Gerardini. “A liberdade do sujeito sobre si é inegociável. No entanto cabe pensar se ali onde há o ‘anúncio’ do suicídio há, realmente, o ‘sujeito do desejo falando’. É nesta encruzilhada que a presença de ajuda profissional pode fazer a diferença entre a vida ou a morte”.