GUSTAVO MAZZOLA

Éramos felizes

02/04/2014 às 05:00.
Atualizado em 27/04/2022 às 00:59

Duas vezes por semana, vestia a minha roupa de ginástica, aquela sunga elástica ridícula, que me obrigava a usar o calção por cima, a camiseta de mangas cavadas, o tênis de odor insuportável, e seguia de casa, na Saldanha Marinho, 904, para o Ginásio Alberto Krum, o “Ginasião”, logo na esquina da Hércules Florence com a Culto à Ciência: começavam cedo as aulas de Educação Física do professor Stucchi, que eram seguidas de um treino de basquete ou futebol de salão na quadra à disposição da meninada. Antes da aula propriamente dita, vinham as preleções do Seo Stucchi, com todos perfilados à sua frente: um dia nos disse que iríamos começar os treinos para uma demonstração física no campo da Ponte Preta. Ficamos apreensivos, mas foi um dos melhores trabalhos de sua vida profissional. Nunca mais nos esquecemos daquelas sequências de ginástica, que empolgaram a cidade num Sete de Setembro. Sim, éramos felizes e não sabíamos. A frase é velha, batida, mas encerra uma grande verdade. Naquele distante 1954 vivíamos, sem nos darmos conta, um dos melhores períodos de nossas vidas: a primeira série — a MA, me lembro — do velho Ginásio do Estado Culto à Ciência. Agora, quando o colégio completa 140 anos, vamos lembrar um pouco desse tempo. Ao meio dia começava o período da tarde. O portão dos meninos era quase em frente à casa do seo Colombo, um dos inspetores de alunos do colégio.Chegávamos mais ou menos à mesma hora, indo logo para a nossa classe, no fundo do corredor, à esquerda. Lá estavam os inspetores Seo Carpino e Seo Bejone, prontos para dar ordem nas coisas. De vez em quando, aparecia também o Seo Cardamone: era preciso fiscalizar se a meninada, em geral de onze ou doze anos, obedecia a uma exigência inquestionável da escola: usar paletó e gravata (mesmo que de calças curtas). Todos de pé — outra regra sagrada: ia começar a primeira das quatro aulas de um daqueles dias: Geografia. Entrava, então, belíssima, com ares de princesa, Dona Maria Helena, envergando um imaculado guarda pó branco, de gola alta e bem fechada no pescoço, que nos levava — pobres coitados recém-chegados à adolescência, — às mais audaciosas fantasias. Nunca mais a vimos depois de encerrado período letivo naquele ano. De março em diante iríamos enfrentar o professor Hilton e sua famosa sala temática, com globos, mapas, bandeirinhas, canecas do Guarani e caçulinhas bem geladas. A segunda aula era com o professor Pedrinho, de História, que vinha elegante num bem cortado terno e discreta gravata. Depois das providências de praxe, buscava um número na sua lista de chamada e dizia, pausadamente: “Seu fulano, o que o senhor sabe sobre a aula próxima passada?” E ai de quem não soubesse, como aconteceu, um dia, com o Fernão Pompeu, que desatou a chorar convulsivamente em plena sala de aula. Depois se acalmou, com o próprio Pedrinho o consolando, sorrindo. Seo Benê, de Latim, na terceira aula do dia, não perdia a oportunidade bater um papinho com o Seo Bejone — em Latim —, para nosso espanto. Depois, vinham as declinações e análises de máximas latinas, tudo naquela sua voz personalíssima, que parecia estar falando dentro de um cano.Enfim, a quarta aula: Canto Horfeônico. Dona Mariinha surgia no alto, vinha caminhando entre as carteiras, elegantíssima num vestido colorido, rodado e um cinto largo, que a deixava ainda mais esbelta, poderosa.— Hoje, vamos aprender a recitar o Hino Nacional, não cantar. Quero tudo decorado para a próxima aula. Certo? Gostávamos das aulas da Dona Mariinha. Especialmente, porque sua sala ficava do outro lado do prédio, o lado das meninas. Era nossa única oportunidade de vê-las durante a tarde. Exceção, é claro, ao Emir Macedo, o único da turma que mantinha frequentes colóquios com o mulherio da casa. Pudera, com aquele ar de galã, cabelos caindo nos olhos, óculos ray-ban e uma bela caixa de couro na cintura. Elas não resistiam, mesmo! Hoje, sessenta anos depois, quando passo pela Rua Culto a Ciência, percebo as rodas do automóvel trepidarem nos paralelepípedos meio desnivelados do calçamento: era a faixa por onde se assentavam os trilhos do Bonde 9, Botafogo, que tinha seu trajeto bem por ali, sempre carregado de alunos. O balançar do meu carro parece um aviso do velho bonde: — Olha, eu ia por aqui, dançando de lá para cá, tocando a sineta registradora das passagens, abrindo e fechando as cortinas coloridas quando chovia, roncando nos trilhos na hora da frenagem... e sentia a meninada do colégio animada, sorridente, brincalhona, barulhenta. Verdade. Éramos felizes, sim, e nem nos dávamos conta disso.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por