Foi a Inglaterra que criou a primeira associação de clubes no século 19, inventando as regras utilizadas nas quatro linhas até os dias de hojE
Se o futebol é o esporte mais popular do planeta, muito se deve aos ingleses. Ainda que a origem da modalidade seja controversa – há quem diga que na China e no Japão já se jogava algo muito parecido há mais de 2 mil anos –, foi a Inglaterra que criou a primeira associação de clubes no século 19, inventando as regras utilizadas nas quatro linhas até os dias de hoje. Sabe aquele orgulho de ter elaborado um prato saboroso que todos à mesa se deliciam e rasgam elogios? Isso talvez explique o sentimento de devoção que o povo inglês tem para com o futebol. Eles amam esse esporte de uma forma incondicional. É algo cultural, capaz de lotar diversos estádios e pubs em dias de jogos, mesmo quando ocorrem partidas de divisões inferiores. Já a principal divisão, a Premier League, é um capítulo à parte. É considerada a melhor liga nacional do mundo. Não à toa, foi a que mais cedeu atletas à Copa do Mundo de 2018. Foram 108 no total, 40 a mais que a liga espanhola. Não tem como negar: se todo muçulmano deve ir à Meca ao menos uma vez na vida, todo fanático por futebol precisa ir para a Inglaterra antes de morrer. A convite do VisitBritain, o órgão oficial do governo britânico encarregado de promover a imagem e os destinos turísticos da Grã-Bretanha, este repórter teve o privilégio de conhecer de perto um pouco da realidade e da história do futebol inglês no fim de 2018. Em uma semana percorrendo a Terra da Rainha, o roteiro incluiu idas a jogos “raízes” do Campeonato Inglês, visitas guiadas a museus e alguns dos mais modernos estádios do país, e até estadia em hotel com tudo a ver com futebol. É um roteiro parecido com o que a agência se prepara para oferecer a turistas brasileiros neste mês. Melhor que chá das 5 Logo na chegada a Londres, troquei o “chá das 5” para assistir ao duelo entre os pequenos, mas simpáticos Fulham x Bournemouth, no charmoso e acanhado Craven Cottage, inaugurado em 1886. O time da casa estava na zona de rebaixamento, vinha de três derrotas consecutivas – sendo uma delas uma goleada de 5 a 1 sofrida diante do Arsenal em seus próprios domínios – e o frio era rigoroso (para um brasileiro calorento como este que vos escreve), em torno dos 7ºC. Nada que intimidasse a presença de 25.071 torcedores no estádio, que tem capacidade para 25.700 pessoas. Algo inimaginável na realidade brasileira... Com bola rolando, festa dos visitantes: 3 a 0. Difícil não se distrair com o tanto de aviões que passam por cima do estádio, vizinho a um aeroporto. É quase uma aeronave sobrevoando a arena a cada três minutos. No caminho ao Craven Cottage, vale escolher a rota que passa pelo interior do belíssimo e arborizado Bishop’s Park. No dia seguinte, foi a vez de conhecer o antigo, mas também muito arrumado Selhurst Park. Assim como o Craven Cottage, o estádio do Crystal Palace (foto) preserva a arquitetura dos tempos de sua inauguração, em 1905, mas tem cadeiras em todos os assentos, bares para matar a fome e a sede de qualquer torcedor e nenhum ponto cego (ainda que por milímetros nos degraus mais altos, com visão das quatro linhas no limite). Foi um jogaço, empate de 2 a 2 do time da casa com o Arsenal. Costumes Chama a atenção alguns costumes locais em dias de jogos. Ingleses sabem promover o futebol em todos os sentidos. Cuidam de seus gramados como o Oscar cuida de seu tapete vermelho. Nos intervalos, são dezenas de funcionários que ligam os sistemas de irrigação e drenagem e aparam pequenas imperfeições na grama causadas pelos cravos das chuteiras. Curioso notar também o sucesso que fazem os “Programmé”, uma revista vendida na porta dos estádios por 3,50 libras com todos os detalhes e curiosidades da partida que está prestes a começar. Pelo menos nos jogos de Fulham e de Crystal Palace, os torcedores pareceram bem educados, tanto que até andam lado a lado com os visitantes do lado de fora, sem brigas. Somente em clássicos a polícia organiza um esquema especial de separação de torcidas nos arredores das arenas. Eles também não xingam tanto os juízes como os brasileiros. E até aplaudem o time mesmo após uma derrota amarga como a do Fulham. Isso até me surpreendeu de certa forma, por imaginar que a violência dos hooligans, os torcedores violentos que deixaram centenas de mortos nos anos 1980 e 1990, ainda pudesse assombrar os ingleses. Dias depois, numa conversa com Alan Maull, supervisor voluntário do National Football Museum, de Manchester, ele me contou que “o hooliganismo sempre vai existir, só está adormecido”. O museu, aliás, vale muito a pena conhecer. Bem dinâmico e interativo, reúne um acervo que mostra a origem do futebol, com as primeiras bolas e uniformes utilizados, até chegar à história das Copas do Mundo mais recentes. Também em Manchester, pude conhecer o Etihad Stadium, casa do Manchester City, com capacidade para 55.097 torcedores. O tour é bem interessante porque, além de percorrer todas instalações da arena e até se surpreender com as cadeiras mais caras ou do banco de reservas que têm calefação no assento e no encosto para se aquecer nos dias frios, é possível conhecer histórias pouco comentadas do clube aqui no Brasil. Você sabia, por exemplo, que em 1999 o time multimilionário que hoje tem o brasileiro Gabriel Jesus e o técnico Pep Guardiola estava na terceira divisão, quase fechando as portas? A épica vitória de virada nos acréscimos sobre o Gillingham, que garantiu o acesso dos Citizens naquele ano, é reverenciada com destaque em painéis ao redor do estádio com o mesmo peso das três taças da Premier League conquistadas pelo clube depois de tal feito. Jantar com Guardiola Por uma dessas ironias do destino, no mesmo dia que conheci o Etihad Stadium e até tirei foto com o “Pep Guardiola de papelão” no vestiário da arena, encontrei o treinador do City de verdade à noite ao jantar em um restaurante de comida catalã do qual ele é sócio. Parecia surreal jantar na mesa ao lado do maior técnico de futebol da atualidade. Mais surreal ainda foi quando ele cumprimentou o grupo de jornalistas brasileiros, elogiou nosso futebol e até nos perguntou sobre nosso novo presidente da República. Já está parecendo história de pescador, mas o volante Fernandinho, que também joga no City e na seleção brasileira, estava no mesmo restaurante naquela noite. Quase aceitou nosso convite para ir a um pub depois... Beatles F.C. Já em Liverpool, terra dos Beatles e do clube de mesmo nome que no ano passado foi vice-campeão da Liga dos Campeões, o tour pelo Anfield Stadium (foto), com capacidade para 54.074 pessoas, é parada obrigatória. Logo na chegada, o visitante já se depara com a imponente frase “You'll Never Wal Alone” (Você Nunca Caminhará Sozinho), lema do clube e principal cântico de sua torcida. Ao subir as escadarias e avistar do alto, a poucos quilômetros, o estádio do maior rival do clube, o Everton, o simpático guia não deixa de provocar. “Sabe a distância entre o Liverpool e o Everton? 11 pontos", brincou, se referindo a distância entre ambos na tabela na época. O Liverpool se orgulha das cinco Ligas dos Campeões que já venceu e o museu do time exalta muito tais conquistas. Assim como exalta seu ex-treinador Bill Shankly, escocês que foi um dos principais técnicos de futebol da história da Inglaterra, tendo comandado o Liverpool por 15 temporadas. Suas frases estão em cartazes por todo o estádio, como a célebre “O Liverpool FC existe para ganhar troféus”. Tem até um hotel 5 estrelas com o nome de Shankly na cidade, onde fiquei hospedado. O youtuber e guia turístico de Londres para brasileiros Rafael Maciel, que me acompanhou na viagem, resume bem a mesma sensação que tive ao conhecer de perto o fanatismo dos ingleses com o futebol: “Acho que nem é fanatismo, mas devoção mesmo. No Brasil vejo muita gente de cidades do interior que acabam torcendo para os times que passam na TV. Aqui é claro que os grandes clubes têm mais torcida, mas os clubes de bairro também têm muita força local. E não importa o momento do time, eles lotam os estádios como se fosse uma religião”. Amém!