Luto na literatura

Sérgio Sant'Anna morre vítima da covid-19

O escritor estava internado no Hospital Quinta D'Or, na zona norte do Rio, há uma semana

Estadão Conteúdo
12/05/2020 às 11:13.
Atualizado em 29/03/2022 às 12:11

No país do conto, desbravado por Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, o ambiente urbano viu outro escritor do mesmo calibre consolidar a obra mais sensual de que a literatura brasileira já teve notícia. Sérgio Sant'Anna morreu neste domingo, 10, aos 78 anos, vítima da covid-19. Sérgio Sant'Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, unindo sabedoria com um profundo interesse nas letras, ao mesmo tempo em que nutria um ceticismo sobre qualquer papel idealizado da literatura na nossa sociedade. Essa visão influenciou mais de uma geração de escritores. Ele estava internado no Hospital Quinta D'Or, na zona norte do Rio, há uma semana. Acostumado a distinções e reconhecimentos críticos, Sant'Anna continuou criando até o fim da vida, nos seus textos ficcionais, uma ambientação sensual para reflexões profundas que encontra poucos paralelos na literatura brasileira contemporânea. A proliferação de sua escrita contrasta com a construção da frase em seus textos, pensada como elemento estético-político, sempre tratada com elegância mesmo na ativa participação do escritor nas redes sociais. Profundamente interessada pelo mundo ao seu redor, bem como a histórias do passado, e situada numa geografia tipicamente brasileira, carioca, a obra de Sant'Anna se volta para os conflitos íntimos dos seus variados personagens, colocando-os em confronto com a sociedade, tornando-os assim universais. Sua tendência à experimentação formal é facilmente detectada no trânsito que sua obra mantinha com diversos gêneros, embora ele mesmo reconhecesse no conto o seu métier principal. "Me dou melhor com formas mais breves", disse o escritor num encontro com leitores em Curitiba, há 10 anos. "Tenho muito mais tendência à narrativa curta do que ao romance. No romance, existe uma vocação. Tem gente que é romancista quase que nato. Tem gente que cria, que puxa aqueles fios da meada, por exemplo, a saga de uma família inteira, que encontra personagens secundários desenvolvidos. Comigo é o contrário, tenho uma tendência à concentração. Inclusive, tem uma coisa que eu sei explicar: o conto me permite experimentar mais. Eu gosto de ser lido - não é experimentação no sentido de tornar o livro absolutamente ilegível. É experimentação no sentido de procurar formas novas para cada livro." Mais recentemente, porém, ele demonstrava inquietação com a definição "conto", preferindo em seu lugar a palavra "narrativas". Torcedor dedicado do Fluminense, o escritor também foi um dos responsáveis por inserir o futebol no contexto da literatura brasileira, em diversos contos, como Páginas Sem Glória, do livro de mesmo nome em 2012. O escritor gostava de citar, em textos ficcionais e nas entrevistas, sua "experiência mineira", quando ele viveu 12 anos em Belo Horizonte, mas o Rio de Janeiro acabou sendo sua principal morada, real e literária. Em um dos contos do seu último livro publicado em vida, Anjo Noturno (2017), o narrador lê Proust ao som dos "tiros de grosso calibre". "O Rio é mesmo o meu cenário, pois nasci e vivi aqui", disse ele ao jornal O Estado de S. Paulo na ocasião do lançamento do livro "Mas também morei em Belo Horizonte por 12 anos, estada que, pela convivência com muitos artistas, foi fundamental na minha formação literária. E, por incrível que possa parecer, durante um certo tempo eu ouvia, constantemente, os tiroteios, com armas de alto calibre, vindo dos morros mais próximos. E houve momentos, sim, que me vi lendo alta literatura, ou escrevendo, ao som desses tiroteios. Mas é também porque as balas não chegam a atingir o prédio onde moro." Suas obras foram traduzidas para alemão, italiano, francês, espanhol e tcheco, e ele venceu, entre uma lista enorme de outros prêmios, quatro vezes o Jabuti (que ele dizia "que todo mundo já ganhou"), três vezes o APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional. Diversos de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para o teatro. Começou em livro com os contos de Sobrevivente, em 1969. Ao longo das décadas, dezenas de títulos aclamados ajudaram a consolidar sua obra no panteão da literatura brasileira, como O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1983), A Tragédia Brasileira (1984), O Monstro (1994), Voo da Madrugada (2003), O Livro de Praga (2011) e Anjo Noturno (2017) , seu último livro publicado até agora. Sérgio Andrade Sant'Anna e Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1941 Quando tinha 12 anos, mudou-se com a família para a Inglaterra, onde aprendeu a ler em inglês. (Do Estadão Conteúdo)

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