CADERNO C

Ópera 'O Guarani' está de volta

Nova versão da obra-prima do maestro campineiro Carlos Gomes sobe amanhã ao palco do Theatro Municipal de São Paulo, dividindo opiniões por incorporar a visão de pensadores e artistas indígenas

Cibele Vieira/[email protected]
14/02/2025 às 15:26.
Atualizado em 14/02/2025 às 15:26
A montagem tem como diferenciais — em relação à opera original — a presença de indígenas e a referência às questões de demarcação de terras no País (Rafael Salvador)

A montagem tem como diferenciais — em relação à opera original — a presença de indígenas e a referência às questões de demarcação de terras no País (Rafael Salvador)

Após receber o prêmio inédito de Ópera XXI, na categoria de melhor produção de ópera latino-americana, "O Guarani", obra-prima de Carlos Gomes, retorna ao palco do Theatro Municipal da Capital paulista para uma curta temporada de sete dias neste mês. Essa montagem tem a concepção-geral do líder indígena, ambientalista, filósofo e escritor Ailton Krenak, direção cênica da premiada diretora Cibele Forjaz, direção musical do maestro Roberto Minczuk, e a participação de uma Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre'y kuery, além de artistas indígenas. A premiação é organizada pela associação representativa do setor lírico espanhol, composta por 25 teatros e festivais de ópera mais expressivos da Espanha. 

Ailton Krenak, responsável pela concepção da montagem, explica que essa produção considera que as questões de identidade presentes no original se articulam sem deixar de fazer reverência à importância histórica da obra. "Estamos fazendo uma remontagem preservando Carlos Gomes e atendendo também ao apelo de Mário de Andrade a que salvemos Peri!, revelando possibilidades do libreto à luz de outras leituras da antropologia e das artes onde os indígenas despontam nesse século XXI, com disposição a tomar a palavra, sem licença ou sem temor da crase — que, como já foi dito, não foi feita para humilhar ninguém", afirma. 

UMA VISÃO INDÍGENA 

A montagem foi um desafio por "reunir um coletivo multicultural, incluindo pessoas com experiência fora do ambiente da ópera, que se prontificaram a mobilizar imagens, sons e textos no propósito de revelar outras possibilidades do libreto inspirado em José de Alencar", relembra Andrea Caruso Saturnino, superintendente geral do Complexo Theatro Municipal de São Paulo. Entretanto, levantou debates acerca do que pode ser a criação no Brasil e deixou sua marca cultural, afirma. Com duração de 180 minutos e classificação acima de 12 anos, a ópera será apresentada no Theatro Municipal de São Paulo nos dias 15, 16, 18, 19, 21, 24 e 25 de fevereiro. Participam da montagem a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coro Lírico Municipal e da Orquestra e o Coro Guarani do Jaraguá Kyre'y Kuery. 

Nessa remontagem que marca o início da temporada lírica de 2025, a codireção artística é de Denilson Baniwa, artista indígena do povo Baniwa cuja cenografia interage com a arquitetura do Theatro. "É uma obra de mais de 100 anos e é a primeira vez que tem pessoas indígenas a reelaborando e pensando a partir de uma perspectiva atual. Significa pensar a ópera e o livro como parte da formação da imagem que as pessoas têm da população indígena", diz Baniwa. 

A OBRA DE CARLOS GOMES 

"Il Guarany" (em português, O Guarani) é uma ópera ballo em quatro atos composta por Antônio Carlos Gomes, baseada no romance de José de Alencar, um dos marcos do primeiro momento do romantismo brasileiro. Seu libreto foi escrito por Antonio Scalvini e Carlo D'Ormeville e esta foi a primeira ópera brasileira a ser aclamada fora do Brasil. Sua estreia foi em 19 de março de 1870, em Milão (Itália). A composição é celebrada por sua rica orquestração, melodias inspiradas e a integração de elementos da música indígena brasileira. Sua abertura foi popularizada por ter sido adotada como tema do programa de rádio "A Voz do Brasil", em 1935. 

Em seu enredo, a jovem Cecília de 16 anos, filha de um nobre português, se apaixona por Peri, um jovem indígena de 18 anos. O amor os une e desafia questões culturais. Também estão presentes no enredo a história da disputa entre os povos das tribos Aimoré e Guarani e o interesse econômico da Espanha na colônia portuguesa, representado pela figura de Gonzales. Na remontagem, esse conflito é atualizado com as questões relacionadas à demarcação das terras indígenas. 

BONITO, MAS POLÊMICO 

Dois cantores líricos de Campinas assistiram, em 2023, a remontagem da ópera e contam suas impressões. Alcides Ladislau Acosta, presidente do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) de Campinas, conta que foi assistir movido pela curiosidade com a concepção do ambientalista Ailton Krenak, divulgada como inovadora e ousada. "Realmente foi tudo isso, trazendo pela primeira vez indígenas de uma tribo Guarani, cuja aldeia se localiza nas matas do Pico do Jaraguá, ali na entrada da cidade de São Paulo. A participação deles, os indígenas, foi excelente, apresentando dança, rituais, cantos, compartilhando o palco com os cantores do elenco. Uma inovação foi que cada personagem da ópera tinha a própria alma silvícola a acompanhálos", relata. 

Ele comenta que foi introduzido um elemento político em cena: o grito dos Guaranis contra a demarcação da terra indígena. Mas acrescenta que "os cantores do elenco que assisti se saíram muito bem na expressão de seus personagens, com vozes bonitas e potentes. O maestro Roberto Minczuk foi impecável em sua regência, assim como a Orquestra do Theatro Municipal de São Paulo e o coral lírico". 

A repercussão que dividiu as opiniões entre os 'preciosistas' da ópera e os 'modernizadores' residiu em que, ao compor “Il Guarany”, o autor Antônio Carlos Gomes "jamais teve a intenção de polemizar, mesmo porque a questão dos garimpeiros da terra Ianomâmi e da devastação da Amazônia era impensável em 1869/1870, época de composição e apresentação da ópera", finaliza. 

Já o cantor lírico João Gabriel Bertolini, presidente da Abal (Associação Brasileira Carlos Gomes de Artistas Líricos) - Campinas, que também assistiu à montagem de 2023, a considerou "bem diferente do padrão habitual, com algum aspecto positivo e vários negativos". Na sua avaliação, "o aspecto político da demarcação de terras indígenas se fez presente nas projeções e por diversas interrupções de pessoas na plateia, que interferiram no bom andamento da ópera, gritando em alto e bom som 'Demarca'!". Ele afirma que, "em toda a obra e vida do maestro, ele fez questão de deixar claro ser brasileiro, a ponto de levar para a Itália no século 19, montagem de duas óperas retratando o índio brasileiro, mas percebo que a montagem não trouxe esse contexto nacionalista". 

Na montagem de 2023, avalia Bertolini, a utilização de tecnologia para ambientação das cenas trouxe manifestações políticas descontextualizando o sentido principal da ópera. "Grafites, faixas e mensagens acabaram desvirtuando a música e a belíssima interpretação dos cantores para um segundo plano no contexto abordado", pontua. Na sua opinião, "a montagem de 2023 ficou a desejar, não ambientalizando a tribo indígena do Brasil, confundindo o libreto da ópera para retratar questões políticas".

Por outro lado, ele comenta que "a cena da floresta, onde a ambientação se deu por várias redes coloridas penduradas pelo palco e o coro esteve espalhado entre as redes, em níveis diferentes de altura, teve um efeito muito bonito que chamou a atenção positivamente, mostrando que é possível fazer montagens econômicas e modernas de ópera sem radicalismo”.

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