ENTREVISTA

'O artista das sapatilhas' leva a vida a bailar

Félix Rodríguez, mestre do Ballet Nacional de Cuba, falou com o Caderno C sobre sua arte

Delma Medeiros
delma@rac.com.br
25/07/2013 às 16:59.
Atualizado em 25/04/2022 às 07:36

Félix Rodrigues, bailarino principal e mestre do Ballet Nacional de Cuba (César Rodrigues/AAN)

Bailarino principal e mestre do Ballet Nacional de Cuba (BNC), Félix Rodríguez foi um dos últimos pares a dançar com a grande diva do balé mundial, Alícia Alonso. Desde o início, participa como convidado especial do projeto Pas de Cuba, que está em sua quinta edição e propõe um intercâmbio artístico entre Brasil e Cuba. Mestre também dos pincéis, Rodríguez ficou conhecido como “o artista das sapatilhas” pelo seu trabalho de pintar velhas sapatilhas. Mas, a pintura é encarada como hobby. “Bailar é minha vida”, afirma o bailarino, que concedeu entrevista exclusiva ao Caderno C. O Pas de Cuba termina este fim de semana com duas apresentações de gala. Caderno C — Você detém o título de bailarino principal do BNC. O que significa? Ainda dança?Félix Rodriguez — Ainda danço, mas apenas os papéis de caráter (menores). O título de bailarino principal é o reconhecimento pelo trabalho de muitos anos. Começamos como corpo de baile, depois vem o título de corifeu, em seguida solista, primeiro solista e bailarinos principais. Depois disso apenas os títulos de primeiro bailarino e bailarino absoluto. No último caso, apenas Alícia Alonso detém este título. Em meu caso, como não sou mais tão jovem, não chegarei a primeiro bailarino, apenas principal e maitre de ballet, cuja função é muito ampla. Além de ensinar, ele deve saber montar os balés, o que é diferente de coreografar. Você chegou a dançar com a Alícia Alonso, um ícone do balé mundial. Como foi trabalhar com ela?Alícia é uma das pessoas mais belas que já conheci. Ama os animais, convive com três cachorros e dois gatos. É amável com todos que a cercam. Estou sempre ao seu lado, agora mais do que nunca em função da pouca mobilidade que tem pelos problemas de visão que a afetam há anos. Conviver com ela foi sempre uma grande experiência e aprendizado, pois não apenas dividíamos o palco como também participei de vários projetos dela. Por exemplo, a criação do “psico-balé” (tratamento psiquiátrico por meio da dança), que existe até hoje em Cuba e que levamos para vários países da Europa e México. Após a revolução, havia em Cuba muitos orfanatos e todos receberam este projeto, para que as crianças se desenvolvessem socialmente e com menos traumas. Muitos desses jovens se transformaram em grandes bailarinos, como Jorge Esquivel, primeiro bailarino do BNC e um dos principais partners de Alícia. Hoje ele é maitre do Ballet de San Francisco. Outros foram Nicolas Izquierdo, Edmundo Ronquillo, Raul Barroso, que vivem hoje em diferentes países, dirigindo importantes companhias. Há ainda os cursos de Verão por universidades da Europa; as aulas didáticas desenvolvidas em conjunto com Miguel Cabrera (historiador do BNC), com o objetivo de captar bailarinos, já que em muitos países o balé ainda é visto como algo para meninas. O que é Alícia para você?Ela é como minha mãe, estou sempre ao seu lado, trabalhando e ajudando em tudo que necessita. Digo que agora ela é minha mãe e ela me chama de filho. Eu a acompanho em todas as viagens. Nos seus últimos anos de carreira como bailarina, eu lhe dava aulas, ajudava a praticar e aprendi a importância da disciplina e da constância. Ela, já com mais de 70 anos, nunca deixou de fazer aula um só dia. Até hoje eu a ajudo a se movimentar, como uma fisioterapia diária, para que siga caminhando firme, com seus 92 anos.Como surgiu o balé em sua vida?Por acaso. Eu vivia no campo, em Camaguey, com meus nove irmãos. Depois da revolução meu pai se mudou para Havana e minha mãe tratou de encaminhar os filhos para estudar e ter uma formação profissional. Ela reuniu minhas seis irmãs e as levou para tentar a sorte como bailarinas. Elas eram mais novas que eu, que sou o mais novo dos filhos homens. Quando chegamos à captação de bailarinos, escolheram a mim e não minhas irmãs. Isso foi em 1964, numa época em que os homens não faziam balé. Não me falaram que era para ser bailarino. Disseram que eu iria aprender esgrima e eu fiz os movimentos para que me avaliassem. Na verdade estavam observando meus gestos e as linhas do meu corpo como bailarino. Eu que nunca havia estudado nada, muito menos esgrima, fiquei ali como um ator fingindo ser o que de fato nunca seria (risos). Mais tarde, quando já consagrado na carreira, um jornalista me entrevistou sobre este episódio e saiu a manchete: “A Estocada Perfeita”. Com 11 anos fui admitido na Escola Nacional de Artes. Nós, os alunos, vivíamos nas mansões dos milionários (transformadas em alojamento) que haviam abandonado Havana após a revolução. Por coincidência o prédio onde funciona a Escola Nacional de Ballet de Cuba, foi no passado o Country Club de Havana, onde os jovens de família rica aprendiam esgrima e onde eu aprendi a dançar e hoje ensino as novas gerações. Profissionalmente, como e quando começou?Estudei por oito anos e quando me graduei (sou da terceira geração de graduados) já me enviaram ao BNC. Ali fiquei como corpo de baile e pouco a pouco fui fazendo carreira até passar por todas as categorias de que já falei e hoje sou bailarino principal e de caráter também. Além de fazer par com Alícia, tem outros momentos que foram especialmente marcantes em sua carreira de bailarino?Quando Vladimir Vasiliev (considerado o maior bailarino do mundo) esteve em Cuba para dançar com Alícia, eu dividi o palco com ele. A grande personagem de Alícia foi Giselle, com a qual ela se consagrou e se tornou conhecida mundialmente, ao ponto da crítica dizer que Alícia nasceu para que Giselle não morresse. Foi exatamente este balé que levou Vasiliev a Cuba para dançar o príncipe. E eu era o amigo do príncipe. Ele era considerado o melhor bailarino de todos os tempos, o melhor do mundo. Esta foto está em meu Facebook (risos) Como surgiu essa parceria com o Pas de Cuba?Eu conheci uma jornalista brasileira em Havana, que estava lá no BNC para falar desse projeto, mas eu não acreditei porque igual a ela muitos outros já tentaram algo assim, mas nunca acontecia, não se concretizava. Então a princípio não dei importância. Essa pessoa era a Bernadete Faria. Quando ela se foi pensei, mais uma sonhadora e esqueci o assunto. Isso foi em 2007 e como as coisas com a burocracia são difíceis, passaram-se dois anos, até que um dia chegaram as passagens e os contratos no departamento das Relações Internacionais do BNC. Aquilo que eu chamava de sonho ou loucura, estava por fim se realizando. Até hoje nenhum projeto deste tipo, sem envolver governos, apenas por desejo, vontade e sonhos passa do primeiro e já estamos no quinto. Considero isso absolutamente fantástico e próprio das pessoas que sonham. Sou agradecido por ela ter me permitido fazer parte deste sonho. Como foi o primeiro Pas de Cuba?Quando cheguei vi que ela não tinha uma escola, mas havia montado um espaço especialmente para o projeto (no Colégio Dom Barreto). Pouco a pouco foram chegando os alunos e o curso foi um grande sucesso, com bailarinos vindos até do Exterior. Em apenas um mês de convivência esses jovens, que vêm de toda parte do Brasil, se irmanam de tal forma a ponto do Pas de Cuba se tornar uma grande família. E conseguimos fazer um bom trabalho com eles, montando um belo espetáculo em duas ou três semanas. O Pas de Cuba veio ao encontro de um sonho antigo de Alícia, de criar a escola latino-americana de balé, pois os latino-americanos têm uma forma específica de dançar, diferente das escolas russa, inglesa, francesa, italiana. Acreditamos que o Pas de Cuba seja o embrião desta escola. Você também é um mestre dos pincéis. Como e porque começou a pintar?Isso também foi por acaso. Quando entrei para o BNC éramos como uma família em que todos são iguais e fazem o que sabem para ajudar a companhia. Eu ajudava a carregar os cenários e descobri que podia ajudar a fazê-los. Observando os artistas passei a pintar cenários. Daí passei a pintar paus, pedras, tudo que encontrava pela rua e percebi que não podia viver sem aquilo. Até os postes da rua da minha casa eu pintei. A pintura me permite extravasar sentimentos. Quando passei a pintar telas as pessoas apreciaram e transformei minha casa em uma galeria de arte. Queria levar para fora de Cuba a minha arte, mas eu sou bailarino e não pintor. Essa é minha profissão e não se pode ter outra, por causa da dedicação plena. Tenho a pintura como hobby ou até mesmo como uma terapia que me faz feliz. Você é conhecido como “o artista das sapatilhas”, mas não pelo balé. Como teve a ideia de transformar em arte velhas sapatilhas?Eu tenho o costume de pegar tudo que encontro e pintar. Um dia estava em turnê e saindo do teatro havia uma sapatilha de ponta no lixo. Como não tinha nada para pintar, levei a sapatilha para o hotel e no dia seguinte desci com ela pintada e foi um alvoroço. Todas as bailarinas queriam me dar uma sapatilha velha para pintar e assim começou essa história do artista das sapatilhas. Como sapatilha velha é uma matéria prima abundante no meio em que vivo, percebi que esse seria o caminho para levar minha arte a todos os cantos, como telas portáteis. É uma forma de levar minha arte para fora de Cuba. Como conseguiu driblar a regra de dedicação plena e ser um artista múltiplo?Eu sou bailarino porque estudei muito, me graduei e toda minha vida estive me aperfeiçoando. Disso eu entendo de verdade e falo com autoridade do assunto. Já a pintura, não. Eu sou um artista autodidata, não faço isso profissionalmente. Não é um meio de vida, mas um hobby, embora seja uma grande paixão. O balé é minha profissão, meu ganha-pão e também uma paixão. Penso que vivo dividido entre duas paixões.

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