Montagem da renomada dupla Charles Möeller e Claudio Botelho está em cartaz em São Paulo: espetáculo resgata sucesso teatral da Brodway sobre o filme 'Oito e Meio'
O ator Nicola Lama é o protagonista de 'Nine - Um Musical Felliniano', em cartaz em São Paulo (Fábio Trindade/ AAN)
Difícil acreditar que Federico Fellini, por volta dos 40 anos, justamente após lançar 'La Dolce Vita' (1960) — uma das mais relevantes do cinema mundial — viveu uma crise criativa. Como uma mente tão brilhante, afiada e no auge de seu poder imaginativo poderia, simplesmente, parar de funcionar? Se é verdade ou não, diz-se que foi durante esse período que, em vez de tentar sair da crise, Fellini pegou exatamente o que estava vivendo e passou para o papel, sem qualquer receio de expor sua intimidade. Nasceu, então, Guido Contini, um famoso e prodígio cineasta que passa por um momento de grave bloqueio mental. Mais do que isso, ele está em crise existencial, um tanto saturado com as mulheres de sua vida, desde a esposa, a amante, a mãe, a produtora, a atriz ou qualquer outra de convivência regular. Ou seja, o alter ego de Fellini. Exatamente por isso, 'Oito e Meio' (1963), o filme autobiográfico do italiano, é a obra-prima máxima de sua carreira, vencedora de dois Oscars (Filme Estrangeiro e Figurino). Uma produção marcada por reflexão, evocação e pela predominância da memória e das recordações de infância de Guido (ou Fellini). O próprio título do trabalho é referência direta a carreira do cineasta. Até aquele momento, Fellini havia assinado seis longas e codirigido outros três filmes. E, nas contas dele, cada longa em forma colaborativa vale meio filme. Portanto, “8 ½” — no nome original. Da crise criativa ao sucesso absoluto, a história sobre toda essa confusão mental alavancou ainda mais a carreira do italiano e marcou, ainda, sua nova fase profissional, muito mais confiante para abordar o moralismo e a fantasia. Não é estranho pensar, portanto, que a Broadway, na década de 70, quando começou a se reinventar, bebeu em 'Oito e Meio' para criar mais um grande sucesso — desta vez, no teatro. “Foi nesta época que o dinheiro começou a faltar e os temas passaram a ficar mais densos. Queria-se uma Broadway mais pensante, temas tristes que estivessem em discussão ganhavam espaço, assim como dores humanas. Em 1973, então, começou a ser realizado um workshop com o nome “Nine”, inspirado justamente no filme 'Oito e Meio'”, explica o diretor e encenador brasileiro Charles Möeller. Foram precisos nove anos para se chegar a um formato e quando 'Nine' realmente virou um musical, em 1982, levando cinco prêmios Tony, incluindo de Melhor Musical, o espetáculo apresentou um Guido Contini como um cineasta que está o tempo todo sangrando, ruindo, revivendo todas as mulheres que passam ou passaram por sua vida. “O filme é muito complexo, porque o Fellini quis fazer um filme sobre o filme. Ele resolveu dizer que o artista precisa estar absolutamente exposto para poder criar um trabalho que vá além do cinema. Dizia que tudo o que existe dentro do artista é o artista. E o Guido diz, o tempo todo, que o filme não existe, que o roteiro é furado, que ele não sabe o que está fazendo. Ele fala que vive um casamento infeliz, que deixou uma mulher para trás, que há uma amante exposta para o mundo, que há uma mãe difícil... enfim. Um personagem com muitas camadas que gerou um musical com mais camadas ainda”, diz Möeller. Era justamente esse tipo de musical, difícil, inusitado, pensante, que Möeller, ao lado de Claudio Botelho, queria montar no Brasil. “Esse é o nosso 38º musical, meu e do Claudio. Se eu não me reinventar, se eu não me autodestruir para me reconstruir, eu vou ficar tirando coelho da cartola. E nessa altura da minha vida, não me interessa tirar coelho da cartola. Fazer musical por musical, eu tenho um monte, então não me interessa mais.” Como resultado, a versão brasileira de 'Nine', que ganhou o subtítulo 'Um Musical Felliniano', estreou nesta quinta-feira (21) em São Paulo, no novíssimo Teatro Porto Seguro, inaugurado há menos de um mês. Diferenças Apesar das diversas referências de Fellini, é possível que o público associe o musical, primeiramente, ao filme 'Nine' (2009), dirigido por Rob Marshall. O longa, obviamente, tinha como base o musical da Broadway e, consequentemente, uma forte inspiração no clássico 'Oito e Meio', mas tomou várias liberdades que o difere de qualquer outra produção já feita. “O filme foi um grande erro”, resumiu Claudio Botelho, apesar do elenco estelar: Daniel Day-Lewis, Marion Cotillard, Penélope Cruz, Nicole Kidman, Judi Dench, Kate Hudson, Fergie e a grande Sophia Loren. “Ele foi muito editado, diversos números foram cortados. Nós não trabalhamos com o 'Nine-filme, mas o Nine-musical”, completa. “Claro que a gente sente uma responsabilidade em atuar no musical porque o elenco do filme é muito grandioso e as pessoas, querendo ou não, podem comparar. E, no meu caso, a responsabilidade é ainda maior, porque o personagem (Guido) passou só por grandes atores. Mas a gente fez a nossa versão e, por isso, precisamos nos livrar de qualquer amarra. Até porque eu não copio o trabalho de ninguém”, afirma o ator italiano Nicola Lama, protagonista da peça. A responsabilidade é real. Guido Contini foi interpretado por Marcello Mastroianni em 'Oito e Meio', Raul Julia (1982) e Antonio Banderas (2003) na Broadway e, por último, novamente no cinema, por Daniel Day-Lewis. Mas Nicola tem experiência e diz lidar bem com a pressão. Só com a dupla Möeller e Botelho, ele já fez 'Um Violinista no Telhado' e 'O Mágico de Oz'. Experiência, por outro lado, é algo com que Carol Castro não pôde contar. Afinal, esta é a estreia em musicais da atriz, e como Luisa, a mulher de Guido. “É sempre muito bom e importante ver uma grande atriz como a Marion Cotillard dar vida a um papel que você fará, mas também não dá para levar muito em consideração porque tudo é muito diferente, tudo muito bem marcado, uma história muito mais completa e difícil. Vai além do filme”, diz, completando que está há seis meses tendo aulas de canto para ser Luisa. “Jamais imaginei que poderia subir num palco e cantar. Aparentemente, agora eu posso.”Veteranos Beatriz Segall é a 'mamma' de Guido Contini, enquanto Lilliane La Fleur, a produtora, é interpretada pela ótima Totia Meireles. “Ela é uma mulher poderosa, até um pouco mafiosa, então é ótimo voltar aos musicais em um papel tão marcante e expressivo”, diz a atriz, que protagonizou 'Gypsy', também de Möeller e Botelho. Carla, a amante, ficou a cargo da jovem veterana e extremamente talentosa Malu Rodrigues, que já esteve no elenco de musicais como 'A Noviça Rebelde', 'O Violinista no Telhado' e 'O Mágico de Oz', no caso, justamente como Dorothy. “A gente sempre empresta um pouco da gente para o personagem. Mas esse é o meu trabalho mais difícil, porque tive que me despir de qualquer pudor. Mesmo assim, não fico me preocupando com o que a Penélope Cruz fez no cinema, eu enlouqueceria, principalmente porque não há comparação entre os trabalhos, porque são totalmente diferentes”, finaliza. AGENDE-SE O quê: 'Nine - Um Musical Felliniano' Quando: até 9 de agosto, de quinta a sábado, às 21h, e domingo, às 19h Onde: Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos, São Paulo, fone: (11) 3223-2090) Quanto: de R$ 80 a R$ 180 (quinta e sexta); de R$ 100 a R$ 200 (sábado e domingo) Vendas: bilheteria, de terça a sábado, das 13h às 21h, e domingos, das 12h às 19h; ou www.ingressorapido.com.br Estacionamento: R$ 20 Serviço gratuito de vans da Estação Luz: De terça a sexta das 19h à 0h, sábados das 13h à 0h e domingos das 13h às 23h