Documentário ‘Cicatriz’, da cineasta Débora Castro, resgata memórias da ditadura militar e traumas que persistem até hoje, passando a limpo a história de seu pai
A história de Claudinei Castro (foto), que foi torturado durante a ditadura militar, é relatada no documentário dirigido pela filha Débora Castro e que tem o também filho Leonel Castro como personagem (Divulgação)
O ano era 1972 e marcou para sempre a vida do professor de educação infantil Claudinei Castro, na época com 29 anos de idade. Ele tinha iniciado a Faculdade de Letras e fazia parte de um grupo de teatro com amigos da Juventude Operária Católica. Sem uma justificativa concreta, ele foi preso pela ditadura militar, torturado e quando retornou à família, quatro meses depois, exibia uma grande cicatriz dorsal e um pesado silêncio. Sua história só foi passada a limpo em 2023, quando a filha Débora Castro (que nem era nascida naquela época) resolveu fazer um documentário sobre esse período obscuro da história brasileira e o pai, hoje com 82 anos de idade, revelou pela primeira vez suas memórias e traumas, junto com outros personagens reais. O documentário de 20 minutos será exibido hoje, gratuitamente, na Casa de Cultura Aquarela, às 19h30.
Em "Cicatriz", a cineasta campineira parte da história pessoal de seu pai, lançando um olhar mais amplo sobre traumas históricos e suas reverberações na sociedade atual, entrelaçando histórias do passado com a luta atual de uma nova geração, filhos e netos que carregam a missão de manter viva a memória das vítimas da ditadura militar brasileira.
"Este documentário é uma jornada de resgate, reconhecimento e resistência contra o esquecimento", explica Débora, cujo trabalho também estabelece conexões com o presente, trazendo depoimentos de adolescentes em medidas socioeducativas. "A presença desses adolescentes no filme evidencia como estruturas de repressão e exclusão ainda operam hoje", afirma.
"Cicatriz é, acima de tudo, um convite ao diálogo e à reflexão sobre cidadania e direitos humanos", reforça Leonel Cabral, irmão da cineasta, psicólogo clínico e também personagem do filme. Especialista no tratamento da dependência química — com várias formações, incluindo protocolo para tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático —, ele atua em programas de medida socioeducativa. O documentário foi inscrito e selecionado em edital da Lei Paulo Gustavo, de Campinas, e a estreia aconteceu no Museu da Imagem e do Som (MIS-Campinas) na última semana, mas quem não assistiu tem uma nova chance hoje.
Para estimular esse debate, após a exibição, haverá uma roda de conversa sobre a produção, com a presença da diretora Débora Castro e seu irmão. Depois, o documentário segue para festivais, cineclubes, universidades e eventos, e a programação pode ser acompanhada pelo Instagram @cicatriz.doc.
ATUALIZANDO A HISTÓRIA
Uma cicatriz não é apenas um traço disforme na pele, ela pode ser um marco que guarda histórias profundas, às vezes de um homem, às vezes de um país inteiro. Desde pequena, Débora ficava intrigada com a cicatriz do pai — que forma um meio círculo das costas até a barriga — mas nunca conseguiu uma explicação convincente sobre ela. Foi em busca de seu passado que nasceu o documentário “Cicatriz”, que chega ao público com uma proposta que ela considera urgente e necessária: "é um filme que atravessa memórias, dores e resiliências para refletir sobre o impacto da violência institucionalizada, a importância da memória e o direito à liberdade", diz.
Hoje ela sabe que a cicatriz do pai foi ocasionada por uma sessão de tortura que deslo cou o rim de Claudinei e, pos teriormente, ele precisou de umacirurgia para corrigir.
Débora conta que o ano passado, marcado pelas gravações, foi intenso. "É um processo difícil, são situações que precisam ser abordadas com delicadeza, com calma, e no nosso caso foi uma catarse, porque somente nesses diálogos ficamos conhecendo e recuperamos a história que meu pai nunca teve coragem de nos contar. Aos 82 anos, ele so freu inclusive um infarto nes se período, mas se sentiu ali viado por ser ouvido e com preendido", afirma, lembran do que em um momento em que adireita tenta se reorgani zar, o documentário chega co mo uma ferramenta de resis tência e de resgate histórico.
Participam com depoimentos no documentário sete pessoas, entre elas cinco garotos do Comec, um centro de orientação ao adolescente que que trabalha com meninos em medidas socioeducativas. A maioria deles passou pela prisão, são menores infratores, e o documentário faz um paralelo entre as histórias deles no presente e a de Claudinei no passado. Leonel Cabral também dá seu depoimento como filho e como profissional que atuou por 15 anos com esses adolescentes, "os meninos ne gros periféricos que também têm asuahistória marcada pela violência", salienta.
SOBRE A CINEASTA
O documentário tem direção e edição de Débora Castro e produção executiva de Janice Castro. A cineasta campineira é formada em Produção Audiovisual pela Universidade Paulista e em Pedagogia pela Unicamp. Atua há 17 anos no audiovisual, com experiência em longas-metragem como "Vai que Dá Certo 2", "O Jornaleiro", "O Monstro e Café, um Dedo de Prosa", em diferentes funções como editora e designer de produção. Já nos curtas, trabalhou em "Rainha do Maracatu", "Uma mão anima a outra", "Na Roça", "Dudu está solteiro", etc. Conquistou dois prêmios por videoclipes no Festclip: Melhor Filme Independente Nacional (2012) e Melhor Roteiro (2013).
AINDA ESTOU AQUI
Produzido antes do estrondoso sucesso de "Ainda Estou Aqui" — filme nacional de tema semelhante que acaba de conquistar o Oscar de Melhor Filme Internacional —, o documentário "Cicatriz" estreou com a feliz coincidência de encontrar o assunto já em debate, apesar da temática árida. "Trazer à tona essa memória e esclarecer traumas deixados nas famílias e no Brasil é importante, para que esse cenário nunca mais se repita", destaca Débora.
"Ainda Estou Aqui" será exibido gratuitamente na Sala Glauber Rocha (MIS-Campinas) em 29 de março, às 19h30, seguido de debate com a participação do ator campineiro e educador-social Daniel de Almeida, que integrou o elenco do filme premiado.
PROGRAME-SE
Exibição do curta ‘CICATRIZ’
Quando: Amanhã (dia 20), às 19h30
Onde: Casa de Cultura Aquarela, Rua Antônio Carlos Neves, 338, Chácaras Campos Elíseos, Campinas
Entrada Gratuita
Informações: Instagram @cicatriz.doc Casa de Cultura Aquarela Fone (19) 98830-8249
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