Longa de Vincent Carelli, exibido no Festival de Brasília, parte de uma contradição: os índios são os donos da terra, mas são tratados pelos brancos como vilões
Índio guarani-kaiowá em cena de 'Martírio': filme mostra a opressão vivida pelos primeiros habitantes do Paísr (Divulgação)
'Martírio', de Vincent Carelli, exibido no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, parte de uma contradição: os índios guarani-kaiowá são os legítimos donos da terra — eles estavam aqui quando os colonizadores chegaram —, mas os proprietários do agronegócio os veem como vilões, pois invadem sistematicamente as plantações dos fazendeiros. Há uma cena exemplar dos índios dizendo que os cemitérios dos ancestrais estão ali na terra de onde foram expulsos (no interior do Mato Grosso do Sul) e que eles querem o terreno de volta, pois desejam obter sustento do fruto por eles semeado, assim como almejam morrer no lugar onde nasceram. Justo que assim seja. De outro lado, um branco os contrapõe. Diz que tem 76 anos e que nunca viu índios por lá, que estes são nômades e, portanto, a terra não lhes pertence — e ainda os chama de mentirosos. Bem, o branco também pode estar mentindo. Como resolver o impasse? O filme toma, obviamente, o partido dos índios — a começar do título. Carelli se vale da ironia de um representante do governo em visita ao local. Este menciona a existência das crianças e declara: “Ora, em algum lugar elas nasceram”. É disto que trata o filme, ou seja, de um conflito que existe desde quando os portugueses aportaram por estas terras além-mar e tentaram várias fórmulas para domesticar os antigos moradores, agora, estrangeiros no próprio País. Claro que os índios são os oprimidos e, portanto, as vítimas de um sistema cruel, pois estão emparedados em pequenos espaços e sofrem com o assédio do branco — que, por sua vez — abominam as invasões. Há outra contradição, porém, extra-filme. Desde o início do festival a plateia de Brasília grita contra Michel Temer — assim como os artistas que apresentam seus filmes. Pois bem, durante a exibição de 'Martírio', a senadora Kátia Abreu (DEM/GO) foi eleita a vilã. Até aqui, normal. Os discursos dela no Senado são contundentes ao tratar a questão indígena não como um problema a ser enfrentado — ela quer o fim das demarcações e “busca a paz”. Fácil pedir paz sem oferecer algo em troca. Ocorre que a senadora se tornou ministra da ex-presidente e não só. Ela virou amiga de Dilma Rousseff, foi uma das poucas a gritar contra o impeachment e, fiel escudeira, deu-lhe apoio até o fim. Ou seja, Katia Abreu conseguiu a proeza de desancar índios e ser parceira da presidente que, em tese, os apoiava. Talvez seja este um dos mistérios deste Brasil improvável para uma história que se repete secularmente. O filme se apresenta como uma epopeia ao reverso, pois há poucas glórias a serem atribuídas à atribulada história indígena brasileira. Porém, o diretor busca uma linguagem que compacte uma narrativa e abarca a trajetória que vem dos primórdios da chegada dos colonizadores e perpassa 500 anos até chegar à triste realidade de hoje. Para isso, dedica 160 minutos; no entanto, mantém o interesse nessa luta insana entre índios e brancos — situação insolúvel desde sempre. E, não só porque assistimos a cenas já mostradas em outras produções, Martírio parece um filme antigo que insiste em contar a mesma história e cujo triste desfecho nós sabemos de cor. * O jornalista viajou a convite do festival