CONFIRA

Marília Pêra concede entrevista ao Correio

Atriz está em cartaz no Theatro Municipal de Paulínia com o clássico da Broadway Alô, Dolly!

Fábio Trindade
15/08/2013 às 11:30.
Atualizado em 25/04/2022 às 05:22
Eu sou filha, neta, sobrinha de gente de teatro, de gente que sobrevivia de teatro. Não existia televisão, então todo mundo dependia mesmo da memória, da voz, da energia cênica. Eu fui criada assim, fui criada com essa severidade da necessidade mesmo (Elcio Alves/AAN)

Eu sou filha, neta, sobrinha de gente de teatro, de gente que sobrevivia de teatro. Não existia televisão, então todo mundo dependia mesmo da memória, da voz, da energia cênica. Eu fui criada assim, fui criada com essa severidade da necessidade mesmo (Elcio Alves/AAN)

Está cada fez mais frequente ler e ver por aí que fulano ou ciclano é um dos melhores do Brasil ou do mundo em alguma coisa, banalizando o real significado do termo “um dos melhores”. Isso acontece, querendo ou não, pela conotação ser, a grosso modo, bem genérica. Segundo quem, é a primeira coisa que devemos questionar, já que, muitas vezes, é a opinião do próprio “elogiado” ou de pessoas próximas a ele. Vamos tentar então resgatar um pouco da proposta. A entrevistada desta semana é difícil, fala o que pensa, chegou, inclusive, a receber o apelido de inflexível durante uma fase da carreira. Mas ela também faz parte do minúsculo grupo de artistas que carrega uma opinião unânime do público quando o assunto é qualidade. E, mais do que isso, pode encher a boca para dizer que tem uma carreira exclusivamente de sucesso. Todos a conhecem, já viram ou ouviram falar, portanto, dispensa apresentações. E aqui, sim, podemos dizer: ela é uma das melhores atrizes do Brasil e não há como contestar isso. Marília Pêra. Caderno C — Dizem que bons personagens vão ficando escassos para os atores mais velhos. Após completar 70 anos em janeiro, você concorda com isso?Marília Pera — A Dolly (do musical Alô, Dolly!) seria um personagem de 36 anos no original. Estou bem perto disso (risos). Bom, as pessoas ficam mais velhas hoje do que ficavam antigamente. Os personagens femininos eram imaginados até 45, 50 anos. Era muito difícil ver um grande personagem escrito para uma atriz de mais de 60 anos. A longevidade é uma coisa moderna. O que ocorre, estava conversando com o Miguel (Falabella) sobre isso outro dia, é que eu, por exemplo, fui bailarina desde muito menina e aos 18 anos ganhei minha primeira protagonista, em Como Vencer na Vida sem Fazer Força. A vida inteira foi assim, eu tenho uma história de protagonismo. Na televisão eu já tive alguns problemas em dizer: eu não vou fazer esse personagem. Não é justo você negar a sua história. A Maggie Smith, por exemplo, que é uma grande atriz. Não seria justo ela chegar aos 70 anos e começar a fazer papéis menores. Esse arranjo deve ser feito para que atrizes não sejam penalizadas só porque envelheceram. A próxima peça que vou fazer, que é do Peter Quilter, o mesmo autor de A Gloriosa e que se chama A Atriz, fala disso. Minha personagem é uma grande atriz de teatro que, quando acaba um personagem, a espera pelo próximo fica mais longa. E ela está muito desesperada por isso porque não quer fazer papéis secundários. É uma grande discussão exatamente sobre essa pergunta que você me fez. A velhice, a idade, pesa para todo mundo. É um fardo, sim, e a longevidade é algo novo e que precisa ser conversado. A Bibi (Ferreira) tem 91 e vai dirigir A Atriz. Ela sabe tudo. Sua vitalidade no palco é algo que impressiona e sempre chamou a atenção. Como chegar aos 70 com tanta disposição?Eu sou filha, neta, sobrinha de gente de teatro, de gente que sobrevivia de teatro. Não existia televisão, então todo mundo dependia mesmo da memória, da voz, da energia cênica. Eu fui criada assim, fui criada com essa severidade da necessidade mesmo. E depois eu fiz balé clássico, então peguei e aprendi muito a disciplina do balé. Entrar em cena para mim é um ponto amoroso, tenho que estar bem, ter feito meus exercícios de voz, aeróbicos, fônico. Eu acho que, de alguma forma, o palco, o teatro, preserva a minha saúde, porque você não pode entrar em cena e se expor mal. Tem que estar com saúde. E eu trato de não engordar porque o público não gosta (risos) de ver o ator que ele ama perdendo a compostura. Tem que comer o necessário, fazer exercícios, rezar e estar de bem com a vida. Eu sou feliz, porque há trabalho para a minha idade. Eu, que sou uma idosa, tenho muito trabalho, graças a Deus. E isso me mantém viva. A idade pesa para todo mundo, como a senhora disse. Mas envelhecer no mundo artístico, tão voltado para a imagem, dinheiro, fama, sucesso, torna tudo ainda mais difícil?A tela é mais cruel, né? Eu me lembro de Dulcina de Moraes, que vi na minha infância inteira, e, aos 48 anos, ela fazia uma menina de 18 no teatro e ninguém ria disso não. Todo mundo achava perfeito. Se você coloca uma atriz de 48 hoje na televisão fazendo uma menina 30 anos mais nova, só se for no Zorra (Total, humorístico da Globo) ou na (série) Pé na Cova (Globo). No realismo, no naturalismo, você não consegue. A tela é mais cruel, porque exige uma veracidade maior. Eu não me importaria de fazer uma avó, eu não sou avó ainda mas meus filhos estão atrasados, mas eu não me importaria desde que meu personagem fosse bom. Eu quero dizer a que vim e não ficar lá sentada num canto. Quero ter um personagem para defender, mesmo que seja em poucas cenas, mas poucas cenas boas. O autor tem que ter esse cuidado. Eu acho que o Miguel é uma pessoa que toma esse cuidado, ele se preocupa com isso. Os elogios entre você e o Miguel são constantes, tanto que na coletiva de Alô, Dolly!, em São Paulo, lá em março, ele te chamou de Messi do teatro. Como você vê esse elogio?Eu acho uma maravilha (risos). Eu adoraria ser uma atriz como o Messi é um jogador porque ele, quando joga, se mata, defende a camisa, defende o time, mas ele articula, raciocina. Ele não é aquele animal forte que usa da brutalidade. Ele calcula, tem técnica, teorias além da prática do futebol. Eu adoraria ser uma atriz como ele é um jogador. E não é?Eu sempre acho que conheço pouco e que gostaria de conhecer muito mais. Mas eu me esforço, e não apenas porque sou filha, neta, sobrinha e tenho 250 anos de história de teatro. Aliás, é essa a minha idade no teatro, porque mesmo estreando no palco aos 19 dias, carrego toda essa carga e essa história da minha família. Até na pele. E, fora isso, por limitações físicas mesmo, faço muitas aulas de canto, de dança, faço exercícios, me preservo, me cuido para entrar em cena com mais energia e saúde. Eu acho que sei bastante mas não o bastante, porque esse conhecimento é infindável e eu gostaria de saber muito mais. É aquela velha história de que ator que não aprende mais é ator morto?Isso é o ser humano. Se o ser humano para de aprender, começa a ficar gagá, não é verdade? Desligar o conhecimento, acreditar que já sabe algo, que é Deus. Como assim, já sabe? Ninguém sabe nada. Como anda o projeto no cinema de A Doce Canção de Caetana, de Nélida Piñon?Ai, que alegria. Eu me encontro muito com a Nélida, é uma amiga queridíssima. Amiga, vizinha, tudo. Mas trata-se de um filme muito caro, então estão com dificuldades para levantar o que precisa para fazer esse filme. Adoraria fazer, mas não sei em que ponto está. A Nélida quer também. E a gente adoraria que o Miguel fizesse o personagem principal masculino, cujo nome esqueci agora. Eu não sei em que pé estão as negociações, mas estou na torcida. Você também tem um projeto antigo para falar sobre os bastidores do teatro e da TV. Vai colocar em prática?Eu escrevo isso há muitos anos. Eu vivo ameaçando, quando me maltratam na TV, eu falo que vou fazer um stand up e contar tudo que uma atriz passa aqui dentro (risos). É engraçado. Se fosse contar seria muito engraçado porque as pessoas não imaginam o que um ator passa no estúdio de televisão, no cabeleireiro, na maquiagem, as longas esperas. Fazer laboratórios para compor personagens se tornou algo obsoleto para alguns de seus colegas da mesma geração, segundo eles mesmos, afirmando decorar textos na hora. O que acha disso?Duas maquiadoras de cadáver me procuraram pelo meu site para falar sobre essa profissão tão diferente e que eu dou vida em Pé na Cova. Eu já tinha ouvido falar dela nos Estados Unidos e não sabia que isso existia no Brasil. Minha mãe morreu em março agora e foi a primeira vez na vida que eu a maquiei. Eu nunca tinha imaginado isso, passar por isso. Foi muito emocionante. Ela já estava bonita morta, com seus 94 anos, muito serena, mas eu dei uma ligeira maquiada para ficar ainda mais bonita. Digo tudo isso para falar que, na primeira leitura de Pé na Cova, quando todos os atores se reuniram, eu fui a única a falar errado. Eu propus isso fazendo: quando foi na segunda leitura, todos começaram a falar errado e, então, veio uma ordem superior na Globo decretando que eu não poderia falar errado. Aí eu briguei: eu vou falar errado sim, eu que comecei tudo. Acaba sendo muito engraçado isso porque, de uma certa forma, eles tentaram preservar a Marília. Eu, Marília, não poderia falar errado. Tive que lutar muito. Já no musical, a minha maior preocupação é a voz. A Alessandra Verney (do elenco de Alô, Dolly!) é uma grande cantora e eu fico atenta na forma que ela coloca a voz, como ela fala. Eu posso ficar em cartaz dez anos com a mesma peça que vou continuar perguntando as coisas e me preparando. E como você vê os jovens atores, em uma época em que a própria Globo busca uma renovação no seu quadro para lançar novos rostos no mercado? Falta preparo?O jovem ator esperto, o jovem ator que está estrelando na TV e é inteligente, vai buscar peças de teatro e diretores bons para ter esse aprendizado. Porque na televisão tudo é muito rápido. Você fica dez horas esperando para gravar, mas na hora da coisa artística, é tudo muito rápido. Muitas vezes não tem tempo para repetir. Eu tenho conhecido jovens atores na TV muito bons. Eles chegam nervosos, porque a gente é mais velho, vem tudo de mãozinha gelada, suando, mas existem. São educados e com vontade de aprender, e vejo que os melhores estão sempre buscando o teatro para ter esse recheio, porque a televisão não dá. Ela dá a projeção, o estrelato, financeiramente é muito bom, deve ser muito bom hoje em dia para o jovem ator. Com tantas obras ressurgindo, qual papel você gostaria de reviver?Eu tive a oportunidade de fazer uma leitura na terça (da semana passada) de Apareceu a Margarida, em Curitiba. Foi uma peça que eu fiz em 73, depois eu refiz em 78 e refiz de novo em 94, as três vezes com direção de Aderbal Freire, todos diferentes. Eu fiz a leitura com Roberto Athayde sentado na plateia. Então foi muito emocionante retomar algo que fiz há tanto tempo. Mas eu te diria tantos personagens: A Vida Escrachada, de Joana Martini e Baby Stompanatto, que talvez eu dirija no ano que vem; Chanel (Coco Chanel) foi uma maravilha; Fala Baixo Senão eu Grito, de Leilah Assumpção, todos os personagens do Bráulio Pedroso. Eu fiz muito autor brasileiro no começo da carreira, nem sei te dizer quantos. Nossa, tem Carmen Miranda, a Dalva (de Oliveira). Eu posso dizer que tenho personagens maravilhosos.Falta mostrar mais esses personagens na TV?O que eu sinto falta na TV, e isso deve fazer uns 40 anos, é o teleteatro. Uma peça de teatro por semana, peça mesmo, poucas câmeras, como se fosse um teatro, às segundas-feiras talvez, para fazer grandes textos da dramaturgia mundial. Isso eu sinto muita falta. Isso acontece um pouco na comédia, como Vai Que Cola, que estreou faz pouco tempo no Multishow.Sim, com o Paulo Gustavo. Mas um grande texto, trabalhado, digamos Longa Jornada Noite Adentro, que é um texto que tem três horas e meia, você poderia fazer em três capítulos. Faz como se fosse um teatro. Eu não entendo porque a televisão não faz isso. Não faz. Eu falei isso para o Boni inúmeras vezes. É uma reivindicação minha, a Fernanda (Montenegro) deve ter falado, a Marieta (Severo), provavelmente a Irene Ravache. Atrizes da minha geração, Nathalia (Timberg) e Bibi um pouco antes. Todas queremos o grande teatro na TV. Mas não tem.

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