Celebração

José Saramago: 100 anos de legado e resistência literária

No ano de comemoração do centenário de nascimento de José Saramago, o mundo celebra a obra do único escritor em Língua Portuguesa a vencer um Nobel de Literatura

Aline Guevara/ [email protected]
16/11/2022 às 08:56.
Atualizado em 16/11/2022 às 08:56
Nesta quarta-feira, 16, comemora-se os 100 anos de nascimento de Saramago (Divulgação)

Nesta quarta-feira, 16, comemora-se os 100 anos de nascimento de Saramago (Divulgação)

"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever". Estas foram as primeiras palavras de José Saramago (1922-2010) no início do discurso de vitória do Nobel de Literatura em 1998. Como explicou depois, ele referia-se ao avô, Jerónimo Melrinho, pobre e analfabeto, mas que lhe transmitiu a arte da contação de histórias nas noites em que levava o neto para dormir debaixo da figueira. Antes de morrer, o ancião "foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver". Anos depois, o escritor português se deu conta que transformou aquele homem comum em personagem, a fim de não se esquecer dele e de sua sabedoria.

Nesta quarta-feira, 16, comemora-se os 100 anos de nascimento de Saramago no pequeno povoado de Azinhaga, no interior de Portugal. Dali, vindo de uma família de camponeses, sairia um dos maiores nomes da literatura em Língua Portuguesa no mundo, o único autor lusófono a conquistar o Prêmio Nobel de Literatura. A honraria, explica Marcos Aparecido Lopes, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira e pesquisador da Unicamp, não é simplesmente dada pela qualidade da obra, mas também se deve à imagem projetada do escritor pelo mundo. "Saramago tornou-se internacionalmente um intelectual público, convictamente comunista e ateu, em um momento em que a experiência histórica do socialismo entrava em franco declínio e uma onda conservadora e liberal varria os quatro cantos do mundo. Ele era uma voz de resistência", esclarece. No entanto, explica o docente, isso não diminui o seu talento.

Obra consagrada

Autor de 31 livros, entre romances, crônicas, dramaturgias, coleções de contos e poesias, Saramago se preocupou em usar sua literatura para "narrar a experiência histórica de Portugal do ponto de vista dos marginalizados e excluídos" e, posteriormente, após o lançamento de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", temas mais universais, descreve Marcos. Entre as temáticas, o escritor usava o realismo e realismo fantástico para apontar injustiças sociais e fazer críticas políticas e religiosas. O professor indica, para quem deseja começar a conhecer a literatura do escritor, o livro de contos "Objecto quase", mas destaca os romances "Memorial do Convento" e "O Ano da morte de Ricardo Reis" como aqueles que contêm "o melhor de Saramago".

Antonio Suarez Abreu, doutor em Linguística pela USP e membro da Academia Campinense de Letras (ACL), aponta outra característica bastante notável da literatura do português, que trabalha a linguagem de forma incomum, sem a pontuação convencional no texto, como a falta de aspas ou interrogação, longos períodos sem ponto final. "Esse modo de escrever demanda muito mais atenção do leitor. Mas, em pouco tempo, ele se acostuma e se aproxima do autor. É como se leitor e autor estivessem participando do ato criativo. Como se o leitor penetrasse no universo do próprio autor, participando do seu fluxo de consciência", analisa ele, citando um trecho de uma de suas obras mais famosas, "Ensaio sobre a cegueira": "Bem, muito obrigado, sem dúvida a telefonista perguntara, Como está, senhor doutor, é o que dizemos quando não queremos dar parte de fraco, dissemos, Bem, e estávamos a morrer, a isto chama o vulgo fazer das tripas coração, fenómeno de conversão visceral que só na espécie humana tem sido observado". 

Celebração portuguesa e brasileira

Ao longo de todo ano de 2022 a Fundação José Saramago, que o escritor criou em 2007 (três anos antes de sua morte), organizou homenagens ao seu fundador. Neste dia 16, o projeto Leituras Centenárias reunirá alunos de dezenas de escolas em Portugal e na Espanha fazendo leituras de trechos de romances do autor. Também será plantada a centésima árvore em Azinhaga, finalizando a iniciativa 100 Oliveiras para Saramago. E em Lisboa, no Teatro São Carlos, será encenada "Blimunda", peça inspirada em "Memorial do convento".

Em visita ao Brasil em outubro, Violante Saramago, única filha do escritor, participou de homenagens e do lançamento do livro "Saramagos - 100 anos de José", organizado pelos pesquisadores Liana Leão e Érico Vital Brazil, obra que celebra o centenário com textos e mensagens de seus amigos e admiradores. A editora Companhia das Letras também lançou uma publicação especial à ocasião em 2022 intitulada "Saramago: os seus nomes", que reúne fotos do acervo da Fundação José Saramago mescladas a cerca de 200 nomes através dos quais histórias da vida do escritor são contadas. E amanhã, às 20h, o Canal Brasil exibe o documentário "José e Pilar", do diretor Miguel Gonçalves Mendes. Coprodução entre Portugal, Espanha e Brasil, o filme narra a história de Saramago com sua esposa, Pilar del Rio, jornalista e presidente da Fundação José Saramago.

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