ENTREVISTA

jornalista relembra quando socorreu Carmen Miranda

Cantora, dirigindo um carro, atropelou um bonde, ficou presa pelas pernas e desfaleceu

Kátia Camargo
katia.camargo@rac.com.br
29/08/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 22:07

Acho que hoje o jornal mudou para melhor, pois antigamente os jornalistas eram improvisados, a maioria fazia bico depois do trabalho, diz ( Rodrigo Zanotto/Especial para AAN)

Dono de um bom humor e uma vitalidade impressionantes no auge de seus 94 anos, Rubem Costa coleciona títulos. Ele é escritor, jornalista, foi professor e diretor de ensino, cronista do Correio Popular e membro da Academia Campinense de Letras (ACL). A idade não o impede de continuar atuante. No final de outubro, lançará seu quarto livro, intitulado A Saga que a Cidade Amou, no qual analisa o bicentenário de Campinas, em 1939, e conta fatos bem curiosos. Ele acompanhou e viveu vários momentos da história política e cultural da cidade, além de ter feito carreira na área educacional. Entre suas frases, ele ressalta que antigamente fazia sempre questão de ser o primeiro em tudo, e hoje prefere ser o último. Bom contador de histórias, ele diz que um dia levou um fora de uma garota ao chamá-la para dançar. Pretensiosa, ela perguntou se ele “não se enxergava”. Isso serviu como um grande fator motivacional e fonte de inspiração para suas conquistas. Ele recebeu a reportagem do Caderno C, em seu apartamento no bairro do Cambuí, contou algumas histórias e falou dos projetos futuros.Caderno C — Onde o senhor nasceu?Rubem Costa — Nasci no Centro de Campinas, na rua José Paulino, esquina com a rua Marechal Deodoro. A casa em que eu nasci estava quase intacta até seis meses atrás. Fiquei triste quando vi que foi demolida, pois queria que ela me acompanhasse pelo menos até eu completar 105 anos (risos). Tive uma vida muito simples, meu pai era funcionário dos Correios e Telégrafos, mas aproveitei muito bem cada oportunidade que a vida me deu e continuo aproveitando. Como começou sua trajetória?Com 11 anos eu já havia terminado o grupo escolar e resolvi fazer o curso secundário. Mesmo pequeno, fui sozinho até o Culto à Ciência, uma das mais tradicionais escolas de Campinas, para pedir informações, prestei exame e fui aprovado. Naquela época entrar no Culto à Ciência era um acontecimento muito importante, tanto que promoviam um baile de boas-vindas aos calouros. Com muito esforço meu pai pagou as taxas e eu fui ao baile. Foi neste dia que conheci o primeiro ato de discriminação que marcaria para sempre minha trajetória. Como minha família não tinha muita condição financeira, eu não fazia parte da sociedade campineira. Havia uma menina da elite que era bonitinha e eu fui tentar tirá-la para dançar. Mas ela me disse uma frase que me marcou: “Você não se enxerga?”. Esse fato acabou me impulsionando e me dando uma força moral muito grande. A frase criou em mim uma constante reivindicação, quis crescer, ser um bom profissional, ser um homem digno, honesto e justo. Quis realmente mostrar que me enxergava, sim, e muito. O tempo passou de jornalista virei professor, de professor virei diretor e depois fui promovido a diretor regional de ensino de Campinas. A primeira providência que tomei ao assumir foi abrir a escola à noite, aumentar o número de vagas para que mais pessoas tivessem a possibilidade de estudar e se “enxergar”, como eu tive, independente da condição financeira ou classe social.Antes era mais difícil conseguir estudar?Na minha época, a estatística escolar era muito complicada. De cada 100 alunos em idade escolar, somente seis tinham a possibilidade de continuar estudando. Quando me formei, queria dar a oportunidade de gente do povo conseguir estudar, para mostrar que todos tinham direitos iguais. Como acabou entrando para o jornalismo?Quando era jovem não havia curso superior em Campinas. Então eu tive que ir para a a escola Carlos Gomes, após sair do Culto à Ciência. Eu tinha que ir de terno, mas eu era pobre e não tinha. Mas o fato de não ter o terno acabou despertando minha veia jornalística. Criei um jornal chamado O Estudante e, antes de fazer a primeira edição, comecei a vender anúncios. Eu era o redator-chefe, diretor e presidente do jornal. Só que ao invés de fazer um jornal de fofocas, comecei fazendo um jornal de reivindicações. No primeiro número eu critiquei a inspetora da escola que tinha marcado exame e não apareceu. E nos outros exemplares fazia uma crítica geral em relação ao ensino de Campinas. E, depois de seis meses do jornal, fui convidado para ser redator do jornal Diário do Povo. O senhor lembra de fatos curiosos do dia a dia da redação?Tínhamos um retrato muito diferente do que é uma redação atualmente. Quando entrei no Diário do Povo, a primeira cadeira que eu sentei só tinha três pernas e a máquina de escrever era de 1918. Outro detalhe é que só havia homens na redação e hoje a maioria são mulheres, o que acho muito bom (risos). Acho que hoje o jornal mudou para melhor, pois antigamente os jornalistas eram improvisados, a maioria fazia bico depois do trabalho. Lembro que a gente fazia “gillette press”, ou seja, chegavam os jornais da tarde de São Paulo e publicávamos as notícias no dia seguinte. Não tinha essa agilidade de divulgar o fato quase que imediatamente. Na época em que o senhor trabalhava na imprensa, acabou socorrendo a cantora e atriz Carmem Miranda (1909-1955) após um acidente. Como foi isso?Em 1939 foi programada a comemoração do bicentenário de Campinas. Para abrir o evento com chave de ouro, Carmem Miranda foi convidada para fazer um show em Campinas. Eu já era jornalista profissional e andava de bonde para me locomover pela cidade. No dia do show, quando estava no cruzamento da Saldanha Marinho com Benjamin Constant, um carro atropelou um bonde que vinha em uma velocidade de 10 quilômetros por hora. Eu desci correndo para socorrer a vítima, sem pensar quem poderia ser. Quando vi uma moça desfalecida fui tentar ajudá-la, mas vi que ela estava presa pelas pernas. Passado o primeiro susto vi que tive o prazer de pegar nas pernas de Carmem Miranda. Devia ser uma motorista novata (risos). Quando entrou na Academia Campinense de Letras?Entrei em 1998, e em 2001 fui eleito presidente da ACL, e voltei a me lembrar da história da menina da elite campineira que me disse: “Você não se enxerga?” E naquele momento eu me enxerguei e vi que tinha conseguido vencer muitos obstáculos, independente da minha classe social. Mas a academia era um local que era considerado uma congregação de velhinhos caquéticos. Achei um absurdo um prédio inteiro abrir somente uma vez e não ter fluxo de pessoas. Resolvi abrir as portas da academia para todas as entidades culturais que não tinham sede. O presidente atual, Agostinho Tavolaro, tem levado o nome da academia para todas as regiões do Brasil. Ele ainda está conseguindo trazer os jovens para a academia. O senhor disse que antigamente queria ser sempre o primeiro e que agora quer sempre ser o último. Por que diz isso?Quando entrei na escola, queria ser sempre o primeiro da classe. Quando estava na escola normal, eram 13 homens e 70 mulheres. Desses 13, eu sou o último. Também morei em Amparo e fundei o Rotary Clube de Amparo, e dos fundadores, eu sou o último que está vivo. Então, eu que sempre tive a pretensão de ser o primeiro em tudo, agora quero sempre ser o último. E, com o passar dos anos, eu virei religioso. Rezo todos os dias para que o penúltimo da academia não morra, pois sou um grande apaixonado pela vida.Na sua opinião, chegar aos 94 anos tem alguma desvantagem?Devido à idade que eu tenho, eu escrevo melhor do que eu falo. Mentalmente eu me sinto muito lúcido, mas a articulação verbal é dificultada pela idade. Escrever eu escrevo fácil, pois articulo bem o pensamento e traduzo em letras. Mas meu pensamento caminha mais rápido que a minha capacidade de expressão. De vez em quando as palavras me faltam no momento que eu estou me expressando oralmente. Escrevendo, a palavra falta, daí eu espero um pouquinho pego um anzol e pesco novamente. Quais são seus próximos projetos?Vou lançar um livro chamado A Saga que a Cidade Amou, que vai contar a história do bicentenário de Campinas, em 1939. Um dos casos que eu conto no livro é sobre o político Ademar de Barros (1901-1969), que instalou a política no Brasil com o slogan “rouba mas faz”, antes mesmo do Maluf. Ademar, em um comício político, sobe ao palanque e diz: “Povo de minha terra, neste bolso nunca entrou dinheiro do povo.” Até que alguém grita lá de baixo: “Ademar, você está de calça nova?”.

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