ENTREVISTA

Historiadora da Unicamp sobre circo fala ao Caderno C

Com mestrado e doutorado sobre a história do circo, pesquisadora tem teses que viraram livros

Delma Medeiros
21/03/2013 às 08:48.
Atualizado em 25/04/2022 às 23:44
Ermínia foi indicada ao Prêmio Governador do Estado de 2012, na modalidade circo (AAN)

Ermínia foi indicada ao Prêmio Governador do Estado de 2012, na modalidade circo (AAN)

Com mestrado e doutorado sobre a história do circo, com teses que viraram livros, a historiadora Ermínia Silva é uma incansável pesquisadora do assunto.

Quarta geração de família de circo, ela conta que a sua foi a primeira geração de circenses que não se tornaram artistas.

Ermínia coordena, juntamente com Daniel Lopes, o site Circonteudo, que reúne vídeos, entrevistas, trabalhos acadêmicos, livros e o que mais se pensar sobre circo, lidera com Márcio Bortoletto o grupo de pesquisa Circus, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é pesquisadora convidada do Centro de Memórias da Unicamp, professora voluntária da Universidade São Paulo (Unesp) de São Paulo, além de orientar pesquisas na área no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

Todo esse trabalho rendeu a ela a indicação ao Prêmio Governador do Estado de 2012, na modalidade circo.

Caderno C — Você vem de uma família circense, é historiadora e seu foco sempre foi o circo. É uma paixão de berço?

Ermínia Silva — Pode-se dizer isso com certeza. Paixão pelo circo sempre existiu. Nós somos a geração que não vai ser artista. É uma mudança significativa no modo de organização do trabalho circense. Até a geração do meu pai, era impensável nascer no circo e não ser artista. É claro que tinham aqueles que casavam, que saíam, mas não era uma geração inteira, não se pensava num outro modo de viver. A minha geração é a que se vê em outro projeto de futuro. A partir dos anos 40, 50 começou-se a fazer apostas pras gerações de crianças de que os saberes valorizados estariam para dentro dos produzidos nas escolas. Isso valeu para todas as profissões de saberes orais. A partir daí, o projeto dos pais era que os filhos tivessem diploma. Há uma quebra na transmissão dos saberes, as famílias param com o circo para que os filhos estudem numa escola. Nós somos em 14 primos e nenhum se tornou artista.

Qual é a sua família no cenário do circo?

Tem duas entradas da família. Uma por parte de avó e outra por parte de avô. Da parte de avó, eles eram artistas na Europa. Somos um país de imigrantes, todos têm algum pezinho de origem europeia. O circo, as artes não fogem à regra. É o artista europeu que chega para fundar as padarias, o jornal, estão em todas as áreas e o circo não foge à regra. O circo, como modo de organização social, surge na Europa, no começo do século 19, particularmente na Inglaterra. E surge como um rasto de pólvora, porque é um sucesso total. Esses europeus começam a viajar pelo mundo. A América Latina era o Eldorado. Não neva, o Brasil é um país tropical, tem a questão do ouro. Ao chegarem percebem que esse eldorado é mais complicado, mas diferente da Europa, não tem guerras. Os artistas é que são nômades, não o circo. Uma parte da família da minha avó vem de Europa ocidental, de uma parte que eles localizam como sendo a Alemanha. Chega na América Latina no final do século 19, começo do 20; e no Brasil por volta de 1910. Minha avó era uma menina e todos eram artistas múltiplos. Por parte do pai do meu pai, chegam no século 19, e tudo indica que vêm de uma parte da Europa oriental, da antiga Sérvia, possivelmente de origem cigana. Os circenses chegam desbravando, porque não havia estradas, os circos viajavam com tropeiros, criando os caminhos, participando das origens de muitas vilas e cidades. O circo é urbano, tem que ter público, senão não tem artista.

Como surgiu seu interesse pelo tema?

Até a geração do meu pai, a história era passada de geração em geração, como é característica da tradição oral. Em 1980 uma jornalista procurou minha prima para fazer entrevista sobre circo, falar sobre a história do circo. Eu era bancária. Quando ela me entrevistou, disse “não sei nada das histórias do circo”. Sabia das histórias da minha família que depois percebi que eram muito importantes. Mas eu não tinha noção, achava que eram “causos” familiares e com um certo preconceito na época, de um vício acadêmico, "causo" não era fonte histórica. Aí comecei a entrevistar minhas tias-avós e não me deparei só com a história do circo, ou delas, mas com a história da produção da cultura brasileira, com a qual o circo estava envolvido e é de uma riqueza, de uma complexidade que poucas pessoas sabem.

As famílias chegaram separadas, mas se juntaram depois ou ficaram em dois grupos distintos?

Eles chegam em momentos e lugares distintos. A família do meu bisavô vai fazendo e desfazendo sociedades. A minha avó e os pais dela chegam como artistas contratados. A parte do meu avô vem como autônomos, artistas de rua que fazem vários tipos de arquitetura circense, têm um conhecimento do que é feito na Europa, mas aqui no Brasil não têm esses equipamentos e eles vão adaptando o conhecimento que trazem para ocupação aqui. A minha avó chega com circos estrangeiros que têm estrutura de toldo ou teatros. Eles ocupam muitos teatros na época, na América Latina toda. A partir de um determinado momento eles se cruzam, se conhecem. Meus avós se conhecem, se apaixonam e casam e aí criam uma outra companhia. Meus avós têm sete filhos, meu avó morre em 1940, com 40 anos. Um ano depois minha avó se casa com o administrador que mantém o circo.

Seus pais e irmãos ainda trabalhavam no circo?

Minha mãe não era de circo, era moça da cidade, como a gente chama. Em 1952, o circo passa pela cidade dela, Duartina, no interior de São Paulo, eles se apaixonam, em três meses casam e ela vai morar com o circo, até se separarem depois de 20 anos. Ela sai, mas emocionalmente mantém um vínculo muito forte com circo. Comecei a fazer entrevistas com minhas tias-avós, depois os tios, pai, fui ampliando e com esse material nas mãos percebi a riqueza de informações que tinha. Então prestei vestibular para história na Unicamp e entrei. Eu era assistente social. Comecei a fazer o curso já com o mestrado desenhado na cabeça. Como trabalhava, fiz seis anos de graduação, mestrado e doutorado, que resultaram nos dois livros que estão publicados.

O mestrado é sobre o Benjamim de Oliveira?

Não, o doutorado é sobre o Benjamim. Eu inverti, publiquei primeiro o doutorado, depois o mestrado (Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil; eRespeitável Público...O Circo em Cena). Quando tive esse contato, vi que eles não tinham ideia que eram escola. Os circenses formaram 300 anos de artistas capazes, super competentes, que dominavam várias linguagens artísticas, porque para ser circense tem que ter essa multiplicidade, mas não tinham noção de que ali tinha uma escola. Cria-se a ideia de que escola, produção científica está em outro lugar. Achavam que não tinham metodologia e que aprendiam aleatoriamente. Mas não é possível um artista com tal capacidade aprender de forma aleatória. Depois vai ter a escola fora da lona, a primeira escola de circo é a lona, esse grupo familiar. Mas a minha geração não teve isso.

Fala um pouco sobre sua tese de doutorado, sobre o Benjamim de Oliveira. O que te atraiu na história dele? Ele é tido como o primeiro palhaço negro do Brasil?

Há o mito de que ele foi o primeiro palhaço negro, mas não é fato. Existiram vários antes dele, escravos que eram palhaços. O circo teve muitos escravos artistas. Ter negro nos espetáculos não era novidade. No mestrado trabalhei o que significava toda essa produção circense, que chamo num dos capítulos deO Circo que Não se Vê. Usei todo um histórico, apresentando esses grupos familiares chegando, como iam se encontrando, o conhecimento para manter as estruturas, a capacidade de adaptação, o conjunto de saberes na questão arquitetônica, forma de incorporação das linguagens artísticas, uma característica circense que a América Latina mantém mais que a Europa, que é o espetáculo da diversidade, a riqueza do circo, que incorpora todas as linguagens artísticas dos lugares por onde passava, faz uma antropofagia. Um pesquisador da história da música, o Tinhorão (José Ramos), diz que se conhece hoje ritmos musicais do século 19 por causa do circo, senão teriam se perdido porque os primeiros a gravar discos no Brasil são os palhaços-cantores, que gravavam todos esses ritmos.

Este foi sobre seu mestrado?

Isso, do que significava esse processo do artista circense, que tinha que ser alfabetizado. Enquanto no Brasil 80% eram analfabetos, os circenses não podiam, porque eles liam textos, faziam seus cartazes, os contatos com as prefeituras, faziam toda sua produção, desde cartazes até relação com os jornais.

E depois subiam no palco?

E depois eram os artistas que faziam sua própria roupa, cuidavam de seu acompanhamento musical. O circense saía do seu número e ia pra banda, depois voltava pro número. Circo, música, teatro, acrobacia sempre estiveram acompanhados, o (Cirque du) Soleil não inventou isso.

Voltando ao Benjamim...

Para o doutorado eu já conhecia o Benjamim de Oliveira, mas ao me aprofundar, vejo uma produção artística circense que me permitiu ampliar o mestrado, de ver os vários circenses, porque o Benjamim para mim é um coletivo, não o considero um sujeito, ele é um coletivo, uma multiplicidade, uma diversidade, que mostra quanto esses circenses entravam nos vários lugares. Ele me permite conhecer o lugar dos circenses em todas as produções culturais que existiam. Durante os séculos 19 e 20, até a chegada da televisão, os palcos-picadeiros circenses foram os principais responsáveis pela divulgação das linguagens artísticas. O teatro fazia isso, mas é fixo, é o circo que leva a música, os gêneros teatrais, a acrobacia, a dança, o animal, a luta, a capoeira para outros lugares. É a forma de mostrar tudo que o urbano oferece. O circo era a única coisa que chegava em 99% das cidades brasileiras e com essa diversidade. Por isso era um sucesso. Independente do espetáculo que apresentava. O Benjamim me permite dar outra entrada do que significava um circense na capital, primeiro da monarquia e depois no início da República.

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