A chegada do disco representou uma revolução para a música, e não é à toa que OK Computer figura entre as principais obras do rock de todos os tempos na lista de praticamente qualquer publicação especializada
A banda Radiohead e o disco OK Computer: raio-x fiel de uma época (Cedoc/RAC)
No final do milênio passado, as pessoas estavam cansadas. Cansadas de trabalhar, cansadas de tentar se adequar a um modelo que não as representava — mas do qual elas sentiam que deviam fazer parte —, cansadas de esperar para desfrutar dos benefícios de uma “revolução tecnológica” alardeados havia muito tempo mas que, espantosamente, ainda não haviam chegado. Cansadas por buscarem ter mais do que ser. Não por acaso, foi em maio de 1997 — há 20 anos — que os britânicos do Radiohead apresentavam ao mundo seu terceiro disco, OK Computer, a trilha sonora perfeita para aquela época conturbada. A chegada do disco representou uma revolução para a música, e não é à toa que OK Computer figura entre as principais obras do rock de todos os tempos na lista de praticamente qualquer publicação especializada. O disco conseguiu levar para o mainstream a combinação entre guitarras e elementos eletrônicos, uma ousadia para uma época que ainda colhia os louros do grunge e do britpop, e quando rock, para ser rock, tinha que ter guitarra, baixo e bateria — e o que fosse diferente disso era jogado na vala do “experimental”. Abre parênteses: ironicamente, OK Computer é um dos discos mais “roqueiros” da carreira do Radiohead, como os próximos passos da banda dali em diante puderam comprovar. Fecha parênteses. Passados 20 anos, não é mais segredo que Thom Yorke, Jonny e Colin Greenwood, Ed O’Brien e Phil Selway quiseram, em OK Computer, afastar qualquer espectro comercial depois de dois discos bastante palatáveis, Pablo Honey e The Bends (este, para os brasileiros, ficou famoso pela música Fake Plastic Trees, usada em um comercial sobre a síndrome de Down — aquele do Carlinhos — que fez sucesso na época). Em troca, o que conseguiu o Radiohead? Muito mais sucesso. E colocar o nome da banda, de vez, no panteão do rock — mesmo que alguns ainda insistam que OK Computer, e todo o Radiohead, não sejam, de fato, rock. Zzzzzz... Mas não foi só a inovação musical que levou o disco às paradas de sucesso. As letras, que tratam do estranhamento do homem perante os avanços da tecnologia e perante a si mesmo diante da nova realidade que surgia, é um raio-X perfeito para aquela época — e também para as décadas seguintes. Sim, o disco ainda é atualíssimo. É como se fosse uma cápsula do tempo, mas que permanece aberta. As canções têm vida própria, mas ao mesmo tempo se ligam umas às outras. Da sinfonia histriônica de Paranoid Android, passando pela beleza sutil de Let Down, a raiva de Electioneering e a ironia fina de No Surprises, o que se forma é uma peça que escancara como, naquela época, a humanidade vivia sem, na verdade, viver (só naquela época?). O disco, no todo, pode ser visto como uma grande metáfora do mundo moderno: analisado bem de perto, ele se revela melodioso e harmônico, mas sempre com algum elemento — uma distorção, um contratempo, um ruído, analogias para nossos erros, tropeços e aquela sensação de que sempre falta alguma coisa — para atrapalhar. Como se tivesse sido milimetricamente construído para não ser perfeito. Em OK Computer, nada parece se encaixar. Mas tudo se encaixa, sim: talvez seja você que ainda não tenha conseguido enxergar.Faixa a FaixaConvidamos especialistas em Radiohead para dar suas impressões sobre as músicas de OK Computer. Confira abaixo: AirbagSe hoje o computador está inserido na vida de milhões de pessoas, nos anos 90 a coisa toda estava engatinhando, o que permitia filosofar sobre a questão "tecnologia x humanidade" , tema que move o terceiro disco do Radiohead. As pistas sonoras vinham sendo deixadas pelo caminho durante a turnê do álbum The Bends (um bootleg chamado Planet Acoustic exibe isso em detalhes), mas ainda assim OK Computer surpreendeu o mundo. Já nesta canção de abertura, Thom Yorke e cia expandem a temática do disco com loops eletrônicos artificiais (inspirados em DJ Shadow) duelando com os riffs de guitarras tocados por Jonny Greenwood num claro exemplo de tecnologia e mão humana se unindo para criar uma grande canção que fala de quase morte e reencarnação (e aqui o Radiohead também está renascendo e se reinventando dispostos a "salvar o universo" ) e sobre a tecnologia salvar uma vida (através do airbag) que ela própria havia colocado em risco (através de um carro). É uma abertura épica para um disco épico. Marcelo Costa, jornalista e editor do site Scream & Yell Paranoid AndroidDesde que a ideia de Apocalipse me foi apresentada, primeiro pela Bíblia, depois pela literatura e da cinematografia distópica, penso que minha reação seria muito simples: procurar um lugar bem alto para conseguir assistir a tudo de cima, até a última cena. Diante desse cenário, duas músicas seriam a trilha sonora perfeita. Until the End of the World, do U2, e Paranoid Android, do Radiohead. E isso não a ver só com questões poéticas, mas "guitarrísticas" . Os solos no final da primeira e no meio da segunda são, para mim, sonoridades que não pertecem ao presente. Nem de 20 e 26 anos atrás quando OK Computer e Achtung Baby foram lançados, nem do presente atual. Nas duas oportunidades que tive de ver as duas bandas tocando essas duas canções, os riffs transpassavam meu corpo. Não é algo que apenas se ouve. E algo que vibra em você. Ainda hoje, esses dois solos continuam me falando de um evento futuro que terá The Edge e Johnny Greenwood fazendo um dueto de cordas; Bono de mestre de cerimônias comentando tudo direto de sua ZooTV e, num canto, Thom Yorke pedindo que algum "subterranean homesick alien" o leve em sua linda nave e lhe mostre um mundo que ele quer ver - e que me leve junto, afinal, todo condenado tem direito a um último desejo. James Cimino, jornalista, correspondente do UOL e da Globonews em Los Angeles (EUA) Subterranean Homesick AlienO nome remete ao clássico de Bob Dylan, mas as guitarras viajantes e teclados angelicais foram altamente inspirados na atmosfera de Bitches’ Brew (1970), de Miles Davis. Num mundo de celulares, serviços sob demanda e informação ilimitada, como não se sentir numa bolha? Nessa pérola sobre fuga e alienação, a banda consegue prenunciar nossos tempos atuais de maneira espantosa, criando uma metáfora sobre sentir-se isolado e separado do mundo… Como um alienígena. Thom Yorke se descola da humanidade e cita os terrestres como "criaturas estranhas que escondem seus espíritos, furam buracos em si mesmos e vivem por seus segredos." Conforme o vocalista torce pra ser abduzido de madrugada numa estrada solitária, efeitos sonoros passeiam como OVNIs pelos alto-falantes. Um dos momentos mais belos de OK Computer. Guilherme Eddino, músico e vocalista da banda Radiohead Cover Brasil Exit Music (For a Film)Sim, Exit Music foi utilizada no final de um filme, o excelente Romeo + Juliet, de Baz Luhrmann. Ao que parece, composta por Thom Yorke e sua trupe a pedido do próprio diretor australiano. Evidentemente, quando se ouve a canção pela primeira vez, não fica lá muito claro que a letra e a música tratam do mais famoso casal da dramaturgia de todos os tempos. O fato é que, dentro do conceito de Ok Computer, a composição funciona muito bem. Ouvir um álbum do Radiohead nunca foi - e nem nunca será - uma tarefa fácil ou palatável. Você briga com o álbum... e ele insiste em te tirar da zona de conforto. Com o terceiro disco da banda não foi diferente. As músicas cativam com a mesma intensidade de um objeto pontiagudo apontado para o coração. Se ouvir Exit Music já pode ser considerado algo catártico, fazê-lo dentro da sequência proposta pelo álbum é uma experiência única. Te acalenta antes de atirá-lo ao abismo. Radiohead em sua melhor forma. Uma das melhores faixas do disco. Daniel Martins, diretor da Sarcástica Companhia de Teatro, do Teatro Escola que leva seu nome e professor de história da arte na FAAL (Faculdade de Administração e Arte de Limeira) Let DownEsmagado como um inseto no chão. Esse é só um dos versos de Let Down, mas explica o suficiente. A canção descreve as sensações de uma decepção com o mundo que parece sempre inevitável, o tipo de melancolia que percorre todo o disco. No papel poderia ser um texto depressivo qualquer, mas o que só Yorke e cia conseguem criar é a cama sonora que conta metade dá história dá faixa. Repare em nos detalhes - a afirmação mais paralisante do refrão é justamente a parte cantada com mais energia , a melodia quase alegre de um teclado de timbre soturno que confunde, atordoa; com guitarras conversando com toneladas de sons que a gente não sabe de onde vem. É a fórmula do hit Creep, sim, mas feita por adultos dessa vez. Como o disco do começo ao fim , a faixa também é dos marcos dá transformação do Radiohead, menos guitarra, mais experimentação, mas ainda respeitando muito a estrutura de canção pop perfeita - verso, refrão, verso, ponte, outro, refrão. Logo eles abandonariam isso também. Vinicius Felix, jornalista Karma PoliceDe cara, o violão e o piano lembram Sexy Sadie, dos Beatles. Karma Police começou com uma piada interna da banda: "Se você não se comportar, a Polícia do Carma vai te pegar!" , diziam os integrantes do Radiohead entre eles, durante a turnê de 1995. Eles mesmos já falaram que a música é uma tiração de sarro. Mas claro que no contexto de um disco como OK Computer, Karma Police adquire um significado muito maior. Um refrão que diz "isso é o que você ganha quando mexe com a gente" tem um toque meio jocoso mas ao mesmo tempo fala sobre opressão e poder. Ambos os temas são recorrentes em toda a obra posterior de Radiohead. Usando uma unidade de delay defeituosa, Ed O’Brien faz a música se dissolver no final. Uma profusão de ruídos eletrônicos engole os instrumentos. Estamos na metade do disco, e as coisas começam a ficar mais sombrias... Guilherme Eddino e Wagner Campagner, músicos, vocalista e guitarrista, respectivamente, da banda Radiohead Cover Brasil Fitter HappierMais saudável. Mais feliz. Confortável. Sem beber muito. Exercícios regulares na academia (três dias por semana)... A sétima música de OK Computer é tão bizarra que muitos nem a consideram uma música - talvez nem mesmo a própria banda, que "esconde" a faixa na lista de canções no encarte do álbum e nunca a executou em um show - apenas como vinheta para entrada no palco durante a turnê do próprio OK Computer. A música é fruto de um período de bloqueio criativo de Thom Yorke, que passou a compor usando listas (sim, podem perceber, palavras jogadas de forma supostamente aleatórias permeiam todo o disco). Em Fitter Happier, ele aponta uma série de ações consideradas ideais em um cotidiano perfeito. Mas a voz de robô e a paisagem sonora perturbadora escancara a ironia: perfeito onde? Perfeito para quem? Embora seja subestimada, Fitter Happier é o cerne de OK Computer. Se o disco tivesse que ser resumido por uma única música, seria por ela. Luís Fernando Manzoli, jornalista ElectioneeringA música mais raivosa do disco remete às canções de Pablo Honey (1993), com muitas guitarras cruzadas e um solo destruidor de Jonny Greenwood. Mas aqui já surge uma sofisticação a mais: enquanto Thom Yorke berra "enquanto eu vou pra frente, você vai pra trás e em algum lugar a gente se encontra" , as melodias andam juntas mas em direções opostas, espelhando a letra. E ao fundo, ruídos fantasmagóricos passam pelos alto-falantes como uma locomotiva. Electioneering não toma partido de nada, só joga imagens fortes na nossa cara, passando pelo FMI, os escudos da Tropa de Choque e a "economia vodu" . Em tempos de polarização política e social em níveis mundiais, ainda funciona e faz sentido. Mesmo parecendo um pouco ingênua no todo da carreira do Radiohead, a música ganha no grito. Guilherme Eddino Climbing Up the WallsNão há nada fora do lugar em OK Computer. Tanto que ainda há fôlego para reforçar as ideias distópicas e a sonoridade única, amálgama de pós-punk inglês e das guitar bands estadunidenses. A isto se somam a eletrônica, na época insípida no pop e restrita à dance music. Os sintetizadores cavernosos antecipam Kid A (2000). O arranjo, especialmente a guitarra, emula elementos sinfônicos que também foram largamente utilizados mais tarde. Como é comum no universo de Thom Yorke, a letra é alta literatura e pura expressão do desespero. Densa e aberta, permite múltiplas interpretações. O assunto, no entanto, não é feliz, como todo o disco. É a prova de que é possível chorar com dignidade e engenhosidade. Os emos, no entanto, entenderam tudo errado. Pior para eles que se tornaram obsoletos tão rápido, diferentemente do Radiohead, que será lembrado daqui a 500 anos. Fabiano Acântara, jornalista do portal Vírgula e músico das bandas Lavoura e Mercado de Peixe No SurprisesNo Surprises é aquela canção de ninar tão encantadora aos ouvidos e tão crítica, fria e verdadeira em suas palavras. Aquela canção de ninar que me fazia dormir quando eu tinha 21 anos e que 10 anos depois eu a colocava pra minha filha dormir (tadinha, mal sabia do que falava a música. Mas o som era calmo e aconchegante, assim como a vida que eu gostaria de dar a ela). Como a vida é estranha, e como as músicas nos embalam de forma constante e ficam pra sempre em nossas vidas. No Surprises é uma dessas que terá sempre espaço em meu dia a dia. Ela se encaixa perfeitamente em minha vida e é incrível como ainda é atual, mesmo após 20 anos. Mas é difícil falar de No Surprises isoladamente, sem pensar em OK Computer como um todo. Cada faixa é parte dessa obra (prima, é bem verdade). Desses tipos que só se constroem a cada 100 anos. Depois de muitos anos, depois de muitos tempos. Por isso, aproveite este momento, escute a música, sinta seu coração e deixe-se ser levado por ela pra onde ela quiser. Era assim que fazíamos há 20 anos. P.S.: Ah! se você tem claustrofobia, não assista ao clipe. Márcia Raele, jornalista LuckyApós uma sequência de canções complexas e pessimistas, depois da infantilizada No Surprises (sem mais surpresas), temos... uma surpresa!: um turning point de alegria e emoção (ou seria mais uma ironia ácida?), com Lucky (Sortudo), que fala de um cara que (provavelmente) se salva de um acidente de avião e (possivelmente) vira um herói e isso sim é que é ter sorte na vida. Mas será que é mesmo bom sobreviver neste mundo - ou sorte seria se tivéssemos morrido no acidente, de maneira rápida e indolor? Vai saber? Detalhe curioso é que é a única canção não escrita para o disco: ela foi criada para o álbum que Brian Eno produziu para a ONG War Child. Lucky foi escrita e gravada em menos de nove horas. E a banda disse que foi a melhor canção que fizeram até então. De qualquer maneira, é a música mais alegre de OK Computer e aquela que a maioria das pessoas aprende a tocar primeiro no violão - menos eu, que não tive a sorte de aprender violão. Luiz Biajoni, jornalista e escritor The TouristChegamos na última faixa do álbum e o turista de fato está só de passagem, mas ele parece não saber como foi parar ali, muito menos o caminho de volta pra casa. Somos espectadores de um ser urbano, solitário, cujo contato mais sensível que nos é relatado se dá com um cão que não ladra para mais ninguém que passa por ali além dele - como se visse um fantasma. A velocidade a qual Thom Yorke refere-se é a de produção, retratando a sobrecarga e fragilidade emocional de qualquer jovem adulto drenado pelo trabalho; bem como sua incapacidade de lidar com o ritmo de vida que o sucesso lhe trouxe. Sobrecarregado, ele lança uma auto advertência - hey, idiota, desacelere - sabendo que ninguém suporta ir rápido a ponto de soltar faíscas por muito tempo. The Tourist é a música mais lenta e visceral de OK Computer, e o encerra perfeitamente com uma grande dose de densidade e melancolia, elementos que permeiam toda essa obra que é incontestável para todos os fãs de qualquer fase da banda. Danielle Lorenzi Gerber Klein, colaboradora da página Radiohead Brasil no Facebook TRECHOS DE LETRAS DE OK COMPUTER “Eu vivo numa cidade onde você não pode sentir nada Você cuida seus pés por rachaduras na calçada (...) Essas estranhas criaturas que trancam sua alma Cavam buracos em si mesmas e vivem por seus segredos Elas estão todas tensas.” Subterranean Homesick Alien “Você pode rir Um riso sem expressão Esperamos que suas regras e sabedoria te sufoquem” Exit Music (For a Film) “Um coração cheio como um lixão Um trabalho que lentamente mata você Feridas que não curarão (...) Vou levar uma vida quieta (...) Tal como uma linda casa, tal como um belo jardim Sem alarmes e sem surpresas” No Surprises “Você me pergunta para onde diabos estou indo A 300 metros por segundo Ei, cara, vá devagar Idiota, vá devagar” The Tourist