Para começo de conversa...

Diretor-presidente do Instituto Arnea defende a cultura em regiões de periferia

Ney Hamilton de Oliveira também é fundador e coordenador de projetos do Arnea

Karina Fusco
19/04/2022 às 09:53.
Atualizado em 19/04/2022 às 09:53
"Falta uma visão mais ampla dos empresários, de destinar recursos não só para a área de assistência, mas sim contribuir um pouco mais para o desenvolvimento da cultura" (Gustavo Tilio)

"Falta uma visão mais ampla dos empresários, de destinar recursos não só para a área de assistência, mas sim contribuir um pouco mais para o desenvolvimento da cultura" (Gustavo Tilio)

Nascido em Campinas, na 11ª Brigada de Infantaria, onde foi criado e morou até os 18 anos, Ney Hamilton de Oliveira, mudou-se para a região da Vila Esperança, periferia às margens da Rodovia Dom Pedro I, já sabendo que se engajaria dentro da comunidade. Ali, vem trabalhando principalmente com jovens, incentivando a prática de esportes e atividades culturais.

Prestes a completar 60 anos de vida e 12 anos do Instituto Arnea, que fundou em sua casa com o objetivo de atender crianças e jovens, ele olha com satisfação para sua trajetória. Abriu mão da carreira para se dedicar ao projeto integralmente, mesmo sem recursos, salário, experiência ou conhecimento. "Foi com a cara e a coragem", orgulha-se o profissional que tem formação técnica em Educação Física, é também técnico em Enfermagem do Trabalho e fez carreira em saúde ocupacional, tendo atuado em grandes empresas.

Hoje, Ney é reconhecido como uma das vozes que defende a cultura em regiões de periferia. Além de fundador, ele é também coordenador de projetos e diretor-presidente do Arnea. Às vezes, ainda encara atividades como faxineiro, pintor e decorador, tamanho o amor e a garra para que seu projeto cultural evolua.

Nossa conversa aconteceu na sala do Instituto Arnea, onde são oferecidas aulas gratuitas de dança para mais de 150 alunos, e terminou com muita esperança e otimismo. Vamos ao papo:

De onde vem essa sua paixão pela cultura?

Eu nem consigo explicar. Não tive acesso à cultura, assim como a maioria das pessoas que nasce na periferia. Minha primeira grande experiência foi assistindo a uma apresentação da Sinfônica Municipal sob a regência do falecido maestro Benito Juarez, que tinha o hábito de levar a orquestra para a periferia. Até hoje me emociono ao lembrar. Foi muito lindo. Ao vivo, parecia que o som entrava dentro da gente. Eu não tenho formação na área de cultura, mas sou um apaixonado pela dança e sei o quanto isso é importante para a nossa comunidade. Um dos objetivos do Arnea não é só desenvolver a cultura e sim levar as crianças e jovens para conhecer espaços culturais. Já fomos duas vezes ao Cirque du Soleil, teatros em São Paulo e recentemente assistimos ao espetáculo da Claudia Raia no Castro Mendes, através da Secretaria Municipal de Cultura, que disponibilizou ingressos.

Como surgiu o Instituto Arnea?

Nasceu na minha casa, em 2009, como um projeto de meio ambiente, que chamava Nine Street. Eu sempre separei material reciclável e defendo o respeito ao meio ambiente. Comecei conscientizando os vizinhos e o pessoal da rua foi cadastrado e orientado como separar o lixo. Daí começamos a evoluir com a parte cultural. O Arnea está completando 12 anos e temos 155 alunos a partir de três anos. Temos bailarinas que dançam aqui há 10 anos, algumas estão até na faculdade.

Como é sua atuação?

Sou eu que escrevo os projetos, fui aprendendo no dia a dia. Eu considero que tenho muitos dons e até trocaria todos eles para eu saber dançar (risos). Hoje ocupamos um espaço público e isso foi fundamental, pois chegou um momento em que não dava mais para pagar o aluguel. Um ambiente do CEU da Vila Esperança foi aberto para nós e durante a pandemia fui arrumando sozinho. Reformei cadeiras quebradas e uma mesa, coloquei vidro, envernizei, decorei, tudo usando material reaproveitado. Nesse processo se deu a parceria entre a instituição e a Secretaria de Cultura. 

Como você enxerga o contato e a aproximação com o poder público e empresas?

Eu acho que é um caminho possível. Se a gente não tivesse um espaço hoje, o projeto teria parado. Como o Arneas é um ponto de cultura regulamentado e a gente estava desenvolvendo um projeto para um edital de Campinas, em conversa souberam da possibilidade de cessão de uso do espaço. Hoje não temos parceiros que doam recursos financeiros, embora o Instituto seja preparado para isso. Estamos vivendo mais de edital. Também já criei um selo para conscientizar as pessoas sobre a reciclagem. Consegui parceria com uma escola de inglês no Guanabara, que dá bolsas aos nossos alunos. Eu brinco que estou enganando as crianças. Elas acham que vêm aqui aprender balé, que é o nosso foco principal, mas elas estão aprendendo lições para a vida. A disciplina é muito importante para o ser humano. Aqui tem regras, inclusive nas aulas de dança contemporânea e hip hop. Do balé, são 12 turmas, de iniciante a partir de três anos até avançado.

Como vocês atraem as crianças e os jovens para cá?

Hoje, quase não é preciso divulgar. A procura é espontânea. As turmas estão cheias, sempre respeitando a questão da saúde e qualidade do trabalho. Entre os alunos, 98% são moradores da região (Vila Esperança, São Marcos, Jardim Campineiro, San Martin, Recanto da Fortuna, Vila Olímpia, Mirassol e CDHU), mas há alguns que vêm do Campo Grande, Jardim Satélite Íris, Vila Industrial e Jardim Eulina.

Na sua visão, qual é a importância de aproximar a criança e o jovem da periferia da cultura?

O programa que desenvolvemos hoje é baseado no primeiro estudo global da Organização Mundial da Saúde, que fez um levantamento em 146 países e mostrou que a cada cinco adolescentes, quatro eram sedentários. Além da inclusão social, a gente entende a dança como uma atividade física e quanto antes eles começarem, é melhor. Nosso projeto não tem começo, meio e fim. Existe uma progressão. As crianças vão mudando de turma de acordo com a evolução técnica e com a idade. Isso vai ser levado para a vida delas. A disciplina também contribui para a formação delas como pessoa. Conviver em grupo, respeitar as diferenças. Temos crianças PCDs, com grau leve de autismo, japoneses, meninos que fazem aula de dança. Tudo isso ensina. A dança em si é muito abrangente.

Como funcionam as parcerias?

Quando vamos a grandes espetáculos, fazemos os contatos para conseguir os ingressos da cota social. Mas os deslocamentos não são gratuitos, então buscamos empresas que cedem ônibus. Quando é aqui em Campinas, fazemos um esquema de carona. Outro exemplo: aqui na região tem uma escola que passou a funcionar em tempo integral e faltam atividades para os alunos. É o tipo de parceria que daria certo com a gente. Temos professoras muito qualificadas. Apesar de estar na periferia, eu prezo muito pela qualidade do trabalho. A gente não está aqui para brincar. Há cobrança de presença (no mínimo 80%), dedicação e comportamento. Quando você faz um projeto sem regras, mesmo que seja uma atividade cultural ou esportiva, na minha visão acrescenta pouco. Porque aí vai valer a lei do mais forte, do mais esperto e o mundo já é assim.

O que a sociedade poderia fazer para contribuir com projetos culturais como este?

A sociedade em si já reconhece o nosso trabalho. Eu acho que falta uma visão mais ampla dos empresários, de destinar recursos não só para a área de assistência, mas sim contribuir um pouco mais para o desenvolvimento cultural. Eles se esquecem da importância da cultura. 

Qual é o futuro que você almeja para o seu projeto e a cultura em si?

Espero que a sociedade, em todas as esferas, olhe um pouco mais para a cultura, uma área que só traz benefícios, inclusive retorno financeiro. Isso já é provado: a cada R$ 1,00 que se investe, o retorno para a sociedade é, no mínimo, cinco vezes maior. Falta essa visão, mas tenho muita esperança e a gente não vai desistir. O Estado está abrindo editais e Campinas tem feito algumas coisas dentro do possível para ajudar, como o FICC.

E qual sua opinião sobre a cultura da periferia?

É importante que existam políticas que olhem para nós. Não posso me queixar porque a Secretaria de Cultura tem dado muita atenção, ajudando até na busca por parcerias. Essa troca é fundamental porque senão a cultura vai continuar centralizada na elite. O Arnea está localizado em uma região que eu chamo de Jurassic Park, estamos entre Barão Geraldo e a Vila Padre Anchieta, dois polos culturais. Aqui, somos o único instituto que trabalha com cultura. Essa descentralização é fundamental para que realmente aconteça uma transformação e essa evolução no meio cultural.

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