Dirigido por cineastas da cidade, o documentário ‘Afrontosa’ — que mostra a atuação de liderança trans — é selecionado para o Marché du Film, no tradicional festival francês que começa hoje
Os diretores do filme, Coraci Ruiz e Julio Matos, chegam hoje a Cannes, na França (Tatiana Ribeiro)
O documentário "Afrontosa", dirigido por Coraci Ruiz e Julio Matos, foi selecionado para participar do Marché du Film, o mercado de filmes do Festival de Cannes, um evento relevante da indústria cinematográfica mundial, que começa hoje (dia 13) e segue até 21de maio em Cannes, na França. A produção, que está em fase de montagem, é realizada pelo Laboratório Cisco e tem estreia prevista para o primeiro semestre de 2026. O filme foi selecionado para o "Cannes Docs", evento dedicado a filmes em processo.
"Afrontosa" mostra a história de Suzy Santos, mulher trans, preta e periférica, fundadora da Casa Sem Preconceitos, um abrigo para pessoas trans em situação de vulnerabilidade em Campinas. O longa retrata sua trajetória ao longo de 2024, quando decidiu se candidatar ao cargo de vereadora na cidade, revelando os desafios de fazer política fora dos moldes tradicionais em um país ainda marcado pela violência contra corpos dissidentes.
Após a divulgação em meados de abril no site oficial do Festival de Cannes, os diretores de Campinas foram integrados à delegação brasileira — composta por cineastas de diversas regiões do País — que participará da Marché du Film. Durante o evento, os projetos selecionados recebem consultorias, participam de rodadas de negócios e apresentam trechos dos filmes para profissionais do setor audiovisual, incluindo possíveis parceiros de coprodução e distribuição. Em 2025, o Brasil é o país de honra no evento, que recebe quatro produções brasileiras.
PERSONAGEM PULSANTE
O documentário "Afrontosa" (Defiant, no título internacional) conta a história de Suzy, apresentada como a mãe de muitos filhos e que nunca para. Cuida do seu abrigo para mulheres trans vulneráveis (a Casa sem Preconceitos), trabalha no serviço de saúde, faz performances em eventos, rituais religiosos e cuida de seus pais. É também militante LGBT e tem uma grande missão: lutar contra a transfobia em uma das cidades mais conservadoras do Brasil.
O cineasta Julio Matos conta que conheceu a história de Suzy durante a produção de outros dois longas, em que eles circularam pelo universo trans da cidade e observaram que ela era respeitada e ovacionada no meio, desempenhando um papel muito importante como matriarca da comunidade trans local. Como ela é avessa à exposição, os cineastas precisaram construir uma relação antes de apresentar o projeto, que se propõe ser um filme de observação, filmando seu cotidiano de maneira bem próxima.
Julio explica que está tentando contar essa história sem os dispositivos tradicionais de um documentário, sem entrevistas ou narrações. "O filme mostra Suzy vivendo a sua vida cheia de aventuras cotidianas e o desafio da montagem agora é usar as peças desse gigante quebra-cabeça que a gente filmou e conseguir contar a história de uma maneira que faça sentido para o espectador", diz.
Para Coraci, a Suzy tem fundamental importância na cidade, porque além de ser uma das grandes lideranças da comunidade LGBT — na organização do movimento e na luta por direitos e espaços —, ela também tem um trabalho como redutora de danos junto ao consultório da rua (programa do SUS que atende os moradores em situação de rua). Ela afirma que resolveram fazer o filme por entenderem que "Suzy é uma pessoa que faz toda a diferença na estrutura da cidade, no momento atual em que temos tanta desigualdade e questões sociais".
UMA DUPLA DINÂMICA
Coraci Ruiz é graduada em Dança, mestre em Cultura Audiovisual e Mídia e doutora em Multimeios, todos pela Unicamp. Julio é formado em Sociologia pela Unicamp e mestre em Comunicação Social pela Goldsmiths Universidade de Londres.
Eles atuam juntos no cinema documental desde 2003 e têm construído uma filmografia que desafia as margens e afirma o direito de narrar. Com "Afrontosa", chamam a atenção do mundo para uma história que poderia ter sido silenciada, mas que, pelo cinema, se torna impossível de ignorar.
O primeiro longa da dupla, "Cartas para Angola" (2012), foi premiado no Brasil, Angola, Portugal e Bélgica; o segundo, "Limiar" (2020), dirigido por Coraci e produzido por Julio, participou de mais de 80 festivais e recebeu 22 premiações no Brasil e no exterior; "Germino pétalas no asfalto" (2022), dirigido e produzido por ambos, foi exibido em mais de 50 festivais em diversos países e recebeu 15 premiações no Brasil e exterior. O curta "Utopia Muda" (2024), dirigido por Julio e com Coraci na produção e no roteiro, também ganhou destaque internacional.
PRODUÇÃO ARROJADA
Para realizar a produção, iniciada em 2021, foram necessários três anos de pesquisa e filmagem, 51 diárias de gravações e isso resultou em 150 horas de material bruto, contam os diretores. A finalização do trabalho está prevista para novembro de 2025 e lançamento em 2026. O documentário tem um orçamento de produção no valor de R$1,2 milhão, que foi financiado com recursos da Lei Paulo Gustavo (Longa BO-SP) e pela AlterCiné Foundation (Canadá).
A produção é do Laboratório Cisco, produtora audiovisual independente sediada em Barão Geraldo. Foi fundada em 2003 com foco na produção e pós-produção de documentários com temas ligados à cultura popular, movimentos sociais, meio ambiente e direitos humanos. Embora com histórico de participação em festivais internacionais, esta é a primeira vez que marca presença no Festival de Cannes. Antes de chegar à França, "Afrontosa" passou por laboratórios de desenvolvimento na Argentina e no Chile.
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