CRÍTICA

Comédia 'A Parte dos Anjos' diverte com encantamento

Filme do britânico Ken Loach traz, de novo, seu discurso e ideias político-sociais

João Nunes
16/03/2013 às 16:16.
Atualizado em 26/04/2022 às 00:24
Cena do filme 'A Parte dos Anjos', do britânico Ken Loach (Divulgação)

Cena do filme 'A Parte dos Anjos', do britânico Ken Loach (Divulgação)

Notório militante das chamadas esquerdas europeias, o britânico Ken Loach nunca perde a chance de discursar suas ideias político-sociais mesmo em comédias. Como em 'A Parte dos Anjos' ('The Angels’ Share', Reino Unido, França, Bélgica, Itália, 2012). E olhe que ele está bem comedido. E quase sempre engraçado.

O começo do filme prenuncia os famosos embates entre as classes operárias (ou pobres da periferia) e as mais abastadas. Robbie (Paul Brannigan) vive no subúrbio de Glasgow (Escócia), tem vários processos nas costas, mas tenta se emendar porque vai ser pai. A namorada rica Leonie (Siobhan Reilly), porém, o alerta. “Tome jeito, pois o próximo processo eu não aguento.” Ele é condenado a prestar serviços comunitários e conhece alguns dos tipos mais esquisitos da cidade. Todos pagam por pequenos pecados, como depredar monumentos, fazer arruaças etc. — atos que no Brasil nem chegariam aos tribunais.

Desta maneira ele conhece um paizão (John Henshaw) — o bom operário Harry (pode-se ler nas entrelinhas) disposto a ajudar os mais precisados. Este irá apresentar nada menos que o uísque, bebida que Robbie nunca havia provado (mais um elemento que o diferencia dos ricos, pois estamos na Escócia, o berço da bebida, ao lado da Irlanda).

O rapaz descobre que tem talento para degustar o precioso líquido, assim como tem esperteza e inteligência. Ele só quer uma oportunidade. E, veja bem, lá vai o Ken Loach e suas ideias sócio-políticas: Robbie poderia almejar ganhar na loteria, aceitar a oferta do sogro de 5 mil euros e se mandar para Londres ou algo parecido. Não, o moço (apesar de briguento e pavio curto) é honesto e só quer trabalhar. Ele deseja um emprego para viver bem com a mulher e o filho.

Bem, tirando essa leitura excessivamente ideológica, A Parte dos Anjos surge como exemplo de um Loach mais solto (como em À Procura de Eric, 2009) no qual o inspirado humor britânico é bem aproveitado em comédia leve e saborosa. É engraçada a trupe de quatro loosers tentando se aprumar na vida à custa dos milionários consumidores e produtores do uísque.

Mas não tem jeito. O diretor gosta mesmo é do contraponto opressores versus oprimidos. Em uma das cenas mais hilárias, três rapazes, entre eles Robbie, estão voltando de leilão de um famoso uísque. Foram de kilt (a saia escocesa para homens) com o intuito de serem respeitados. E a polícia (pedra no caminho dos pobres) os enquadra a fim de revistá-los.

Em seguida, o inacreditável acontece. O mais tosco dos amigos, incapaz de reconhecer o Castelo de Edimburgo ou imaginar quem seja Monalisa faz o mais ideológico dos discursos e resolve um impasse econômico digno de O Capital, de Marx. Isto é Ken Loach. Mas se esquecermos estas pequenas digressões políticas e nos atermos apenas às agruras e descobertas do herói dos descamisados, Robbie, A Parte dos Anjos diverte com encantamento. A começar do sotaque escocês, que trafega entre o engraçado e o sedutor. Depois, vemos os costumes, as belas paisagens, a cultura riquíssima do país e, claro, as delícias (para quem gosta) e a excelência do famoso scotch.

Em relação ao título do filme, até poderia ser algo similar ao gole da aguardente que, no Brasil, se dá ao santo. Mas vai um pouco além. Há uma sofisticação na chamada “parte da bebida que fica com os anjos”, cujo prazer em descobrir o que é está em assistir ao filme.

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