Primeiro discípulo do pesquisador e diretor Luís Otávio Burnier (1956-1995) conversou com o Caderno C
Um dos fundadores do Lume Teatro, em 1985, o ator Carlos Simioni ( Dominique Torquato/AAN)
Primeiro discípulo do ator, pesquisador e diretor Luís Otávio Burnier (1956-1995), com quem criou o Lume Teatro, em 1985, Carlos Simioni abandonou a família, namorada e o curso de teatro que fazia em Curitiba para seguir o mestre em Campinas. É curador do Encontro Mundial de Artes Cênicas (ECUM) desde 2004 e um dos dez atores escolhidos por Iben Nagel Rasmussen, atriz do Odin Teatret, para integrar seu grupo Ponte dos Ventos. Em um de seus raros momentos em Campinas — o grupo vive em viagens fazendo workshops e apresentações — Simioni conversou com o Caderno C sobre sua carreira. Caderno C — Você já fazia teatro antes do encontro com o Luís Otávio Burnier?Carlos Simioni — Eu fazia a Escola de Teatro Guaíra, em Curitiba. Eram quatro anos de curso, mas conheci o Burnier quando tinha acabado o primeiro ano. Em Curitiba eu fiz o Rei Lear, de Shakespeare, um velho de 80 anos, e eu tinha 25. Aí saiu nos jornais: “a revelação do teatro paranaense”. Foi super legal, mas eu fiquei desconfiado. Como “revelação? Estou começando, não quero ficar nessa cidade porque se me consagram com um ano é sinal de que não vou crescer, e não sei nada ainda”. E como foi seu encontro com o Burnier?É hilária a história. Minha professora de expressão corporal disse que havia chegado um rapaz da Europa dando o curso A Linguagem do Corpo e sugeriu que eu fizesse, porque meu corpo era travado. Foi no Rio de Janeiro, um curso de um mês, cheguei empolgado e não tinha vaga. A secretária sugeriu conversar com o professor. Ele me disse para aparecer no dia seguinte para ver se tinha alguma desistência. No outro dia nem perguntei nada, fui entrando. Começou a aula e foram quatro horas de exercícios, de treinamento energético, esgotamento do corpo. Quando acabou, queria desistir. Por sorte, tinha um amigo de Curitiba na turma que insistiu para eu continuar. Fui novamente e foi a mesma coisa. Duas horas depois estava exausto, mas três horas depois estava saltando mais que no começo. Percebi que tinha acontecido algo diferente comigo. Eu tinha extrapolado minhas dificuldades, os limites do meu corpo e percebi que era o que queria. No último dia, disse ao Burnier que queria ser seu discípulo. Ele me disse que estava para criar um núcleo de pesquisa na Unicamp, e quando desse certo, me chamaria. Um ano depois ele me chamou. E você veio pra cá?Larguei tudo, o curso, emprego, família, namorada e vim pra cá pra começar do zero com ele. Fiquei dois anos e meio sem receber salário nenhum. O Burnier me hospedou na casa dele com a Denise — ele tinha recém-casado com a Denise Garcia. Comíamos a mesma comida e ele me emprestava dinheiro pra comprar cigarro. A gente trabalhava o dia todo. Quanto tempo foram só vocês dois?Cerca de três anos. Depois chegou o Ricardo (Puccetti). Com a morte precoce do Burnier, como vocês se organizaram?Foi um choque, muito rápido. Ele estava trabalhando e cinco dias depois morreu. Um choque. A coisa boa é que durante os 10 anos de trabalho, o Burnier nunca disse que a pesquisa era dele. Sempre dizia que a pesquisa era nossa. Com a morte dele, isso foi um dos pilares: ele morreu, mas a pesquisa é nossa. A configuração do Lume na época também ajudou. O Luís Otávio tinha recém-confirmado a presença dos atores que estão até hoje. Hoje somos sete (entrou depois a Naomi Silman), mas ele agregou os quatro (Renato Ferracini, Ana Cristina Colla, Raquel Scotti Hirson e Jesser de Souza) que tinham feito estágio. Em dezembro, ele disse que queria trabalhar com eles. Em fevereiro, ele morreu. Nos sentimos mais fortes por sermos seis. Além disso, o fato dele ter morrido nos deu a força de dizer “agora essa pesquisa não pode morrer”. Por dois motivos, porque a pesquisa é forte e porque temos que honrá-lo. Mas foi difícil. Também não sabíamos como ficaria a situação, porque ele era a ligação com a Unicamp. Mas a Unicamp nos deu o maior apoio, porque o importante era a pesquisa em si, não só a pessoa do Luís Otávio. Você integra também um grupo de teatro da Dinamarca. Qual é?É o Odin Teatret, um dos grupos mais antigos e importantes do mundo, do Eugenio Barba. Tem uma atriz, Iben Nagel Rasmussen, que está lá desde o começo e que quando fez 25 anos de grupo, decidiu não fazer mais workshops, porque depois não acompanhava os avanços. Decidiu escolher dez atores, um de cada parte do mundo, para ver como cresciam. Por sorte, fui um dos escolhidos, sou o representante brasileiro. Isso foi há 22 anos. Ela criou o grupo Ponte dos Ventos. A gente se encontra uma vez por ano por um mês, há 22 anos. Hoje são 20 atores. Criamos três espetáculos, mas o principal do trabalho é a elaboração de treinamento para ator, que acaba sendo disseminado para atores do mundo todo. Ela é uma grande mestra. Em dezembro, nos encontraremos pela 23 vez na Dinamarca. Tenho a Iben como uma grande mestra. Sempre digo que perdi um mestre, que é o Burnier, mas ganhei outra e vou acompanhá-la até o fim. Qual o foco do trabalho do Lume hoje?O Lume tem que sempre estar se reinventando. São 28 anos e meu grande medo é de virar “teatrão”. Acabamos de chegar de Ouro Preto onde fizemos Os Bem Intencionados. Acabou o espetáculo, e durante os aplausos, alguém gritou: “isso é teatro contemporâneo”. Fiquei tão feliz. O foco da pesquisa sempre foi o trabalho do ator, a elaboração técnica. E quanto mais a gente se aprofunda, mais chega na essência. Uma das vertentes é como transmitir a experiência do Lume para outros atores. Também temos a preocupação de deixar legados escritos. Outra questão é como transformar a maneira de construir espetáculos. No mundo teatral hoje, a cena se modifica, há muita tecnologia, mas é como se a maneira de atuar fosse sempre a mesma. Com nossos espetáculos buscamos achar uma forma de possibilitar aos atores descobrirem essa nova maneira de atuação. O Lume tem várias peças em repertório. Em quais você atua?São 14 espetáculos no Lume. Participo de três solos: Kelbilim, o Sopro e Prisão pra Liberdade. De três espetáculos em conjunto: Shi Zen 7 Cuias, Os Bem Intencionados e Parada de Rua; e do espetáculo de clown Cravo, Lírio e Rosa, com o Ricardo. E mais três na Dinamarca. Estou com dez espetáculos. Os Bem Intencionados, o trabalho mais recente, fez temporada em São Paulo, ganhou prêmios, mas não foi apresentado em Campinas.Isso é uma tristeza pra nós. Vendo a reação do público nas apresentações, sempre falamos que Campinas tem que ver, queremos mostrar em Campinas. Mas a estrutura da cultura da cidade impede, infelizmente. Realmente é muito difícil fazer teatro em Campinas. Vocês têm uma parceria forte também com o Tadashi Endo. Como aconteceu?Foi quase por acaso. O Tadashi estava vindo ao Brasil, há uns 12 anos, para um festival de butô numa cidade do interior de São Paulo, que não lembro o nome. Foi cancelado, mas ele já estava com as passagens. Uma amiga nossa, Yael Karavan, que participa do grupo do Tadashi, disse que ele precisava conhecer o Lume. Ele veio e a empatia foi de cara. Nós já tínhamos experiência em butô com a Natsu Karajima e a Anzu Furokawa, mas pelo fato dele morar há 30 anos na Alemanha, conseguiu ocidentalizar a maneira de explicar o butô. Estávamos querendo fazer outra montagem coletiva e convidamos o Tadashi para dirigir. Assim construímos juntos o Shi Zen, que foi uma fusão do butô com as técnicas do Lume. O Lume também participa de um projeto que envolve três países. De que se trata?É o Perch. Um projeto que vem sendo maturado há algum tempo. Fomos convidados por um pessoal de Glasgow, na Escócia, por conta do trabalho de rua do Lume. Nesse projeto eles queriam juntar três países, que ficou sendo a Escócia, o Brasil e a Austrália, com a proposta de fazer essa transformação das ruas em arte. O tema é o pássaro — “perch” é poleiro (em inglês). É a possibilidade de mostrar um pouco a unificação das artes em três continentes ao mesmo tempo. Ocorre no ano que vem, mas em outubro os grupos de lá virão para uma primeira experiência em Campinas. Terá participação da Orquestra Sinfônica da Unicamp e de vários grupos de teatro daqui. O grupo está com outros projetos no forno?Sim. No forno ainda não, bem antes disso. Mas ainda não posso contar. Estamos preparando o aniversário de 30 anos que começa em 2014, com alguns projetos, como o Perch e a montagem de um novo espetáculo. E queremos de novo nos passar a rasteira e fazer algo que nunca fizemos. A proposta é inovar e nos reinventar.