A artista se projetou na noite campineira nos anos 80, mas a espiritualidade sua terra natal - a Bahia - falou mais forte e ela se tornou mãe de santo
A cantora Tatiana Rocha: "Em Salvador, a fé e a festa andam juntas" (Camila Moreira/ AAN)
Nascida em Niterói (RJ), ela foi para Salvador (BA) com 4 anos e veio para Campinas em 1987, aos 20. Na Bahia começou a tocar nos bares, para “ganhar um troco”, sem a pretensão de ser artista. Tatiana Rocha revela que queria ser médica, porém “nunca mandou na sua vida” — e a música se enraizou definitivamente em sua trajetória na terra de Carlos Gomes. O primeiro bar que acolheu a jovem foi o extinto Ilustrada, onde fazia duo com a amiga Carô, numa época em que não havia muitas mulheres nos palcos da noite e o machismo era mais evidente, segundo ela. De lá para cá, se passaram quase 30 anos — e nesse tempo a cantora gravou nove CDs. Passou um longo período vivendo só de canções autorais (como poucos conseguem), deu aulas para crianças e adolescentes da periferia durante quatro anos, tem atualmente um projeto infantil chamado Dedinho de Moça e outro de samba de roda, o Samba de Iaiá. Além da música, finalizou recentemente dois livros: um de pequenas crônicas e um romance sobre umbanda, que pretende lançar em breve. Sobre umbanda porque, em meio a esse turbilhão, Tatiana foi confirmada mãe de santo, tendo fundado seu terreiro em 2013. Assim, virou mãe de dois filhos de sangue e dezenas de outros espirituais, “como condiz às filhas de Iemanjá”, segundo ela. Vive numa casa com três cachorras, duas gatas, sem televisão e um grande jardim no qual trabalha com as ervas sagradas, conforme a tradição africana. Isso lhe deixou calos nas mãos, porém lhe deu muita força espiritual para sua formação como dirigente religiosa. Foi lá que ela recebeu o Caderno C.Caderno C — Como foi essa época do bar Ilustrada? Tatiana Rocha — O Ilustrada era “o” lugar. Tinha um começo de música forte na cidade, com muita gente legal. O mercado musical ainda não tinha conhecido a primeira afronta, que foi o sertanejo xexelento. A gente botava todo mundo pra dançar com canção de Caetano Veloso. Eu ganhava numa sexta-feira um salário mínimo e Carô ganhava outro. Não tinha muita mulher tocando aqui e a gente fez sucesso.Sua formação foi na noite? Eu sou uma cria da noite, de bar. Uma cantora de formação de boteco, eu sou botequeira, não tenho nenhuma técnica vocal, nunca estudei música e aprendi a lidar com as pessoas na noite, o que dá um instinto muito bom. E eu uso esse aprendizado, por incrível que pareça, no terreiro.Como foi essa guinada de cantora da noite para mãe de santo em terreiro de umbanda e partir para pesquisas sobre samba de roda? Eu vim da Bahia, onde faz parte da cultura ter tudo muito misturado. A fé e a festa andam o tempo inteiro juntas. O candomblé é muito forte, a cultura negra, então eu sempre tive meus afetos, li Jorge Amado, oras. E lá comecei a me envolver com a umbanda, não com o candomblé. A umbanda tem uma coisa interessante que é misturar as culturas no mesmo balaio. Se canta em português, usa os ritmos de cada região do País. Então eu sempre ouvi as músicas sacras, os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Mas eu também não queria ser mãe de santo, assim como não queria ser cantora. Fiquei um longo período estudando muitas coisas dentro de religião, espiritualidade, feminismo, magia, cultura geral.Foi difícil se assumir mãe de santo? Levei um susto! Queria ser médica, virei cantora, passei 30 anos fazendo isso, batendo de peito, enfrentando o machismo que tem no meio musical, casei várias vezes, briguei muito por aquilo que queria. Pensei “pronto, a música é minha história”. E aí chega outra coisa ainda mais forte e te faz um chamado. Eu perdi o rebolado. Não escolhi, fui convocada. E aceitei. Vi que existe semelhança entre a música e a religião. Tanto uma musicista, quanto uma sacerdotisa, trabalha para o outro. O outro é meu foco. A música pode ser a mais bonita do mundo, mas se ninguém quer ouvir, qual a utilidade? E a gente sempre tem que pensar onde quer chegar. Eu estava satisfeita com minha carreira de cantora, mas chegou uma onda do mercado muito triste, medíocre, fruto de 40 anos de uma educação comprometedora do Brasil que fez com que os ouvidos ficassem muito ruins. Neste momento, eu fui para educação, passei quatro anos dando aula para crianças de bairros de alta periculosidade. Isso mudou minha vida.De que forma? Antes eu cantava e olhava esperando pela admiração das pessoas. Depois eu trabalhava para que aquelas crianças quisessem que eu fosse vê-las simplesmente, que eu estivesse com elas. É muito mais generoso. O seu olhar vai mudando para o outro. Foi neste momento que teve o salto. Eu já tinha percebido que a música só para satisfação da minha necessidade de expressão não era suficiente e que precisava passar para as novas gerações o que eu achava valioso. Ou seja, eu precisava manter a tradição da música popular brasileira. De certa maneira é o que eu faço na religião.Você fundou o terreiro há dois anos, inicialmente em sua casa, mas agora tem lugar próprio. Tudo bem rápido. Rápido e assustador, é uma força muito grande! E a umbanda tem uns pontos lindos, em português, é brasuca total e tem como fundamento básico o que eu acho essencial: fazer a caridade e trabalhar pela bondade. Eu tive que fazer um processo de recolhimento profundo dentro dessa casa. Quando entrei aqui era só mato e pedra, tirei tudo isso sozinha, no braço. E foi importantíssimo porque não dá para iniciar um trabalho desse sem uma reforma íntima interna. Para eu poder assumir esse compromisso espiritual, tive que fazer esse mergulho, abrir minha “caixa de Pandora”.Isso tudo interferiu diretamente na música? Sim, pois eu estava me transformando internamente, questionando paradigmas. O que eu cantava tinha que mudar. Foram cinco anos de solidão total, praticamente nenhum encontro amoroso, ou seja, falar de amor não tinha cabimento porque eu não estava sentindo. Então, o que dizer, o que cantar? Minha vida era só orixá, entidade, umbanda, tradição, preceito. O que eu poderia cantar que tivesse a ver com o terreiro?Foi aí que nasceu o Samba de Iaiá? É. Eu tinha uma história com samba de roda, que tem a ver com as mulheres, então pensei “por que não?” O Samba de Iaiá não tem um fundamento religioso como tem, por exemplo, o Maracatu de Exá. Quer dizer, tem uma coisinha sim, mas que dá para você levar para a rua. E tem todo o contexto coerente com a umbanda: primeiro, é a tradição; segundo, é na rua, é popular, é pra todo mundo; terceiro, é de resistência, num movimento feminino de força, de ação. Quando o terreiro se formou e eu vi que as pessoas estavam a fim, foi uma alegria. A gente fica muito feliz de estar juntos.No ano passado vocês lançaram um CD do Samba de Iaiá. Quais os próximos projetos musicais? Porque eu sei que você nunca para de compor... Agora eu estou retomando um novo processo, porque enquanto eu estava completamente envolvida na formação do terreiro e desenvolvimento do Samba de Iaiá, eu estava fazendo música relacionada só a esse tema. E agora? Comecei a ficar agoniada com o que eu teria para dizer agora, depois de tudo. Exatamente nesse processo comecei a encontrar antigos parceiros que têm uma forma de pensar parecida comigo e eu estou pensando nessa ideia. Em verdade, eu acho que tem muita coisa que precisa ser dita e a bola da vez está na mão dos artistas para segurar esse retrocesso teórico.Quando você sentiu que se iniciava um período de retrocesso? Quando se formalizou no Congresso Nacional e nas Câmaras grupos fascistas. Para mim, que sou uma mulher de fé, o que acontece é uma absoluta falta de luz. É do mal. Não gera o bem. E o artista tem que pensar sobre isso. Eu não sou do fronte da política formal, porque não tenho verniz para isso, eu sou uma compositora e mãe de santo, então, tenho que agir. Se eu digo que sou uma dirigente mulher, estou me posicionando como uma liderança, isso é um ato político; se eu monto um grupo de samba de roda que vai para a periferia, isso também é política. E onde entra a música? Eu tenho que dar esperança a esse povo, vamos dançar, aliviar, nos divertir, porque amanhã a luta volta. Sobretudo aos jovens. Eu assumi o papel da velha.Qual é o papel da velha? A gente tem que conversar com os jovens, não podemos deixá-los sozinho aqui, colhendo essa porcaria toda. E eles estão sozinhos porque “os coroas”, como eu, estão desistindo, morando em condomínios fechados, dizendo que não vale mais a pena. Não, a gente precisa orientar essa turma jovem, dar ao menos o respaldo histórico. Então eu assumi o papel da velha, de cabelo branco. Nós, mulheres, sempre temos mulheres mais velhas que nos servem de referência. As minhas estão morrendo, inclusive minha mãe, que se foi há pouco tempo. Pensando em quem iria segurar a minha onda, vi que eu sou sim a mulher mais velha e pronto, vamos assumir isso. Na umbanda e na música tem uma hierarquia forte, a gente tem que sempre respeitar quem chegou antes da gente. Depois de mim, será outra e assim segue.