ONDA DE PROTESTO

Canção 'Cálice' vira 'Cale-se' em cartazes de passeatas

Composição de Chico Buarque e Gilberto Gil volta a ser referência nos movimento sociais

Delma Medeiros
19/06/2013 às 15:28.
Atualizado em 25/04/2022 às 19:26

Escrita em 1973, censurada pela ditadura militar e liberada para gravação somente em 1978, a música 'Cálice', uma parceria rara entre Chico Buarque e Gilberto Gil, volta à cena nesse momento de ebulição social no País, com seus versos relidos em cartazes empunhados pelos manifestantes. E muito apropriadamente. Como resume o musicólogo e crítico de música Zuza Homem de Mello, “Cálice se tornou um símbolo do movimento para as pessoas se fazerem ouvir”. Composta para o show 'Phono 73', realizado em maio de 1973 no Anhembi, em São Paulo, a música seria cantada pela dupla de autores. “Como era época da Páscoa, Gil fez a primeira estrofe e o refrão ‘Pai afasta de mim esse cálice’, numa alusão à angústia de Cristo no calvário. Mas Chico logo percebeu que a palavra cálice tem duplo sentido. Escreve-se de forma diferente, mas é uma palavra homofônica, com dois significados quando se ouve. Ao fazer a música, os dois perceberam que poderiam usar o verbo ao invés do substantivo. Na letra que mandaram para a censura colocaram o substantivo e passou. Mas quando os censores ouviram, perceberam o duplo sentido e proibiram a canção”, conta Zuza.

Os compositores ficaram sabendo no dia do show que a música havia sido proibida. “O Gil disse: ‘Foi recomendado que não a cantássemos, mas fizemos uma desobediência civil’” , lembra Zuza. Os autores decidiram então cantá-la sem letra, entremeada com palavras desconexas. Dessa vez, porém, a censura contou com a colaboração da própria gravadora Phonogran (ex-Philips e depois Polygram), que organizava o espetáculo. Assim que começou a cantar o refrão, o microfone de Chico foi desligado. Ele buscou outro microfone, que também foi desativado, e assim sucessivamente. “Foi uma cena insólita, de visível repressão em relação a democracia. No fim, ao invés de abafar a música, o incidente a projetou, ela se tornou um símbolo”, reforça Zuza.

No vídeo da apresentação, Chico pode ser visto reclamando da repressão. “Está me aporrinhando muito esse troço de desligar o som. Isso não estava no programa. Estava no programa que não posso cantar esta música nem Ana de Amsterdã. Não vou cantar nenhuma delas, mas desligar o som não precisa”, disse antes de ocupar outro microfone para continuar o show.

A canção foi liberada, cinco anos depois, tendo sido lançada em novembro de 1978 no álbum Chico Buarque, ao lado de Apesar de Você e Tanto Mar, outras canções censuradas pelo regime. Segundo Zuza, à época, Chico declarou que aquele não era o tipo de canção que estava compondo (ele estava trabalhando no repertório de Ópera do Malandro), mas que elas deveriam ser registradas, pois a liberação tardia não pagava o prejuízo da proibição. “Na época o Gil estava trocando de gravadora, então chamaram o Milton Nascimento para cantar com o Chico em coro com o MPB4, num dramático arranjo de Magro, integrante do grupo e brilhante arranjador, que morreu recentemente”, diz o crítico. Essa história consta do livro A Canção no Tempo - volume 2, de Zuza e Jairo Severiano. Em dezembro do mesmo ano, foi a vez da cantora Maria Bethânia gravar a canção no seu álbum Álibi.

Para Zuza, a mobilização atual traz vários motes e mostra a insatisfação generalizada da sociedade com a situação do País. “Os 20 centavos da tarifa de ônibus foram apenas o estopim. O fato é que as pessoas não aguentam mais tantas mentiras. Ontem (segunda-feira) a passeata passou na rua da minha casa e pude acompanhar os muitos motes. O principal mote era contra a Copa. Um dos cartazes dizia ‘A Copa, a Copa, a Copa eu abro mão. Quero meu dinheiro para saúde e educação’”, conta o crítico.

Quando Cálice finalmente foi gravada, a censura veio de lugares antes impensáveis: os bispos que criticavam a existência de uma doutrina que castrava as liberdades individuais proibiam a execução da música em missas.

No livro Chico Buarque - História das Canções, de Wagner Homem, o autor conta que “quinze anos depois do ocorrido, falando ao Correio Braziliense, Chico comentava as distorções que a censura provocava em todos os níveis: ‘Às vezes, eu mesmo não sei o que eu quis dizer com algumas metáforas de músicas como Cálice, por exemplo (...) naquela época havia uma forçação de barra muito grande, tanto a favor quanto contra. Ambos os lados liam politicamente o que não era. (...) Já disseram que o verso de muito gorda a porca já não anda de Cálice era uma crítica ao Delfim Netto, que era ministro. E gordo (risos)’. Indagado sobre o real significado, respondeu: ‘não faço a mínima ideia. Esse verso é de Gil’.”

Resgate é visto como natural por quem viveu a ditadura

Quem curtiu a música Cálice e tudo o que ela representava vê com naturalidade esse resgate da canção. “Acho que é importante a canção ser lembrada, no sentido de apresentar para as novas gerações uma música que é parte da história da resistência à ditadura militar. É preciso que essa característica seja conhecida para não se perder o contexto e a história”, afirma o educador social Ney Moraes. “Essa música está atrelada a questão da memória, verdade e justiça. Cálice é um símbolo que deve ser retomada nesse novo momento de luta. É importante manter o mesmo contexto social”, acrescenta. “Por coincidência, zapeando pelos canais, vi uma notícia sobre a mobilização em São Paulo, e havia um cartaz com o refrão ‘Pai, afasta de mim este cálice!’. Trata-se de uma das músicas daquela época que volta a se encaixar no momento social”, avalia o músico Antonio Carlos Montone, que toca na noite desde 1980. Ele conta que foi militante na juventude e Cálice, juntamente com outras músicas daquela época, eram sinal da resistência. “Em 1977/78 começou a abertura e teve o boom de bares com música ao vivo, locais que viraram palco para mostrar essas músicas com caráter social”, diz Montone, que agora acompanha a ação do filho adolescente, que tem participado da mobilização em São Paulo. 

LETRA

Cálice

(Chico Buarque e Gilberto Gil)

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue (2 vezes)

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor e engolir a labuta?

Mesmo calada a boca resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada, pra a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)

De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)

Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade?

Mesmo calado o peito resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)

Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)

Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)

Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)

Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)

Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)

Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)

Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)

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